Irmã Marisa, oesi, lendo o Salmo Responsorial.
São Francisco de Assis e o Valor das Escrituras Sagradas
Introdução
A história da espiritualidade cristã está marcada por homens e mulheres que, em diferentes épocas, redescobriram a centralidade da Palavra de Deus. No século XIII, em meio a um cristianismo medieval frequentemente marcado por tensões entre riqueza e pobreza, poder e simplicidade, surge a figura de São Francisco de Assis (1181/82–1226). Sua vida não foi apenas um testemunho de desapego e fraternidade, mas, sobretudo, de obediência radical às Escrituras Sagradas.
As fontes primitivas franciscanas testemunham que Francisco não quis fundar uma ordem baseada em sua própria criatividade, mas apenas “viver segundo a forma do santo Evangelho” (Regra não bulada, 1,1). Tal princípio mostra que para ele a Escritura não era um texto a ser apenas lido ou interpretado, mas um caminho de vida a ser encarnado. Sua herança foi transmitida não só pela prática dos frades menores, mas também pela tradição intelectual franciscana, que buscou unir o ardor da experiência evangélica à reflexão teológica.
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Francisco e a Palavra como Regra de Vida
As biografias iniciais de São Francisco deixam claro que sua conversão foi profundamente bíblica. Tomás de Celano, em sua Vita Prima (1228–1229), narra que Francisco, ao ouvir o Evangelho da missão dos discípulos (Mt 10,7-10), exclamou: “Isto é o que eu quero, isto é o que eu procuro, isto é o que eu desejo fazer de todo o coração” (1Cel 22). Esse episódio mostra como a Escritura se tornou para ele norma imediata de existência, não objeto distante de estudo, mas Palavra viva que convoca e transforma.
No seu Testamento, escrito pouco antes da morte, Francisco reforça a mesma convicção: “E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrava o que eu deveria fazer, mas o próprio Altíssimo me revelou que eu devia viver segundo a forma do santo Evangelho” (Test 14). Aqui aparece a centralidade da Escritura como revelação direta de Deus e fundamento da fraternidade.
Essa relação direta com a Bíblia não exclui a Igreja, mas revela sua raiz carismática. Francisco não pretendeu criar um novo cânon espiritual, mas devolver ao povo a simplicidade da Palavra, vivida em obediência, pobreza e fraternidade.
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A Prática da Palavra: Ouvir e Viver
As Admoestações de Francisco são um testemunho de sua leitura bíblica orante. Em várias delas, Francisco cita literalmente a Escritura. Por exemplo, na Admoestação VII, ele diz: “Onde há caridade e sabedoria, aí não há temor nem ignorância”, ecoando 1Jo 4,18. Já na Admoestação I, recorda a humildade de Cristo: “Consideremos todos, irmãos, o bom pastor, que para salvar suas ovelhas suportou a paixão da cruz”.
Tomás de Celano relata que Francisco amava ouvir a Palavra proclamada e que “frequentemente pedia que lhe lessem os Evangelhos do Senhor” (2Cel 102). A Escritura era alimento de sua alma e critério de discernimento. Não se tratava apenas de ouvir, mas de imitar: “Os irmãos nada mais devem ter a não ser este: o santo Evangelho” (Regra não bulada, 1,1).
Esse amor pela Escritura moldou também sua pregação. Francisco não era um orador eloquente segundo os padrões escolásticos, mas falava como quem vive a Palavra. Celano descreve que “sua língua era como fogo ardente, porque o coração estava cheio de amor pela Escritura” (1Cel 97).
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Ecos Intelectuais Franciscanos
A partir de Francisco, a tradição franciscana uniu experiência bíblica e reflexão teológica. São Boaventura, na Legenda Maior (1263), afirmou: “A intenção de Francisco não era outra senão observar o Evangelho em tudo e por tudo, com toda vigilância, todo esforço, todo desejo” (LM Prologus 2). Para Boaventura, a vida de Francisco era uma “exegese viva” do Evangelho, uma hermenêutica prática da Palavra.
Alexandre de Hales, mestre de teologia e franciscano, via na experiência de Francisco a confirmação de que a verdadeira teologia nasce da escuta da Escritura no seio da Igreja. Ele dizia: “A pobreza evangélica de Francisco é a chave que abre o sentido espiritual das Escrituras”.
Mais tarde, João Duns Scotus (†1308), conhecido como “Doutor Sutil”, ressaltou que a encarnação de Cristo — centro da devoção franciscana — manifesta o primado do amor de Deus, verdade proclamada nas Escrituras e assumida radicalmente por Francisco. Para Scotus, a fidelidade à Palavra era inseparável da contemplação do Verbo encarnado.
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O Valor da Escritura para Francisco e para Nós
Para Francisco, a Bíblia não era apenas objeto de veneração, mas Regra de vida. Seu modo de falar e agir mostrava que a Palavra de Deus estava no coração de sua espiritualidade. A sua obediência literal — “nada possuir, anunciar a paz, viver entre os pobres” — pode soar ingênua ou radical demais, mas traduz o desejo profundo de viver em comunhão com o Cristo dos Evangelhos.
Para nós, herdeiros da Reforma e da tradição protestante, esse testemunho franciscano continua atual. O princípio da Sola Scriptura, tão caro à fé reformada, encontra em Francisco um eco existencial: a Escritura não deve ser apenas estudada, mas encarnada na vida. Enquanto os reformadores insistiam no retorno à Palavra como autoridade suprema, Francisco já havia intuído, de modo carismático, que viver o Evangelho é deixar-se configurar pelo Cristo que fala nas Escrituras.
Assim, tanto na espiritualidade franciscana como na tradição protestante, encontramos um convite comum: voltar sempre à Palavra de Deus como fonte, regra e alimento.
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Conclusão
São Francisco de Assis não escreveu tratados exegéticos, mas sua vida se tornou comentário vivo da Escritura. Ele nos recorda que a Palavra de Deus não é apenas letra, mas Espírito que dá vida (2Cor 3,6). Seus biógrafos, suas próprias palavras e a tradição franciscana posterior testemunham a centralidade da Bíblia em sua vocação.
Hoje, em meio às tentações do consumismo e da superficialidade, o exemplo de Francisco continua a provocar a Igreja a voltar-se ao Evangelho com simplicidade e radicalidade. A Reforma protestante, ao recuperar a centralidade das Escrituras, partilha com Francisco a mesma intuição: a Palavra é o fundamento, a regra e a vida da comunidade cristã.
Que possamos, como Francisco, como os reformadores e como tantos santos do povo de Deus, redescobrir o poder transformador das Sagradas Escrituras.