sexta-feira, 17 de junho de 2011

Francisco renuncia a sua Herança terrena Tinha recebido uma Herança eterna



Francisco vende os tecidos do Pai [1]
Francisco, já convertido pelo Espírito Santo, tendo preparado um cavalo, montou e, levando consigo os tecidos de seu pai para vender (seu pai Pedro Bernadone era um grande comerciante de tecidos de Assis), partiu veloz para Foligno.
Tendo lá vendido como de costume tudo que levara, o feliz mercador deixou até o cavalo que montara, depois de receber o preço que valia. De volta, livre da carga, vinha pensando no que fazer com o dinheiro.
Admirável e repentinamente todo convertido para as coisas de Deus, achou que era pesado demais carregar aquela soma por uma hora que fosse. Considerando simples areia todo aquele pagamento, apressou-se em se desfazer dela.
Vindo na direção de Assis, encontrou à beira do caminho uma igreja erguida havia muito tempo, a Igreja de São Damião, que estava em ruína por sua muita antiguidade. 
Chegando a ela, entrou na igreja e encontrou lá um sacerdote pobre, beijou suas mãos cheio de fé, deu-lhe o dinheiro que levava e contou direitinho o que queria.
Espantado, e admirando tão incrível e repentina conversão, o padre não quis acreditar.
Achando que estava sendo enganado, não aceitou o dinheiro oferecido. Mas o jovem insistia teimosamente, e com palavras ardentes procurava convencer o sacerdote que, pelo amor de Deus, lhe permitisse viver em sua companhia.
Afinal o padre concordou em que ficasse, mas, por medo de seus pais, não recebeu o dinheiro, que Francisco, jogou a uma janela, tratando-o como se fosse pó.

Perseguido pelo pai[2]
Seu pai sentiu sua falta e a falta dos tecidos e começou a procura-lo. Quando entendeu como ele estava vivendo naquele local, teve o coração ferido de íntima dor, e ficou muito perturbado com a súbita mudança.
Convocou amigos e vizinhos e correu o mais depressa que pôde para onde morava o servo de Deus.
Francisco, sabendo das ameaças dos que o perseguiam e pressentindo sua chegada, não quis dar oportunidade à raiva e se meteu numa cova secreta que tinha preparado para isso.
Esteve um mês nesse esconderijo, que ficava na casa e talvez só fosse conhecido por um amigo, mal ousando sair para as necessidades.
Comia algum alimento, quando o recebia, no fundo da cova. Todo auxílio lhe era levado em segredo.
Banhado em lágrimas, orava continuamente para que Deus o livrasse da mão dos que o perseguiam e, por um favor benigno, lhe permitisse cumprir seus piedosos propósitos.
Jejuando e chorando, implorava a clemência do Salvador e, desconfiando da própria capacidade, punha em Deus todo o seu pensamento.
Mesmo dentro do buraco e na escuridão, gozava de uma alegria indizível, que nunca tinha experimentado. Cheio de ardor, saiu do esconderijo e se apresentou às injúrias dos que o perseguiam. 
Levantou-se sem vacilar, com alegria e presteza. As pessoas passaram a insultá-lo miseravelmente, chamando-o de louco e demente, e lhe atiraram pedras e lama das praças.
Viam-no completamente transformado em seus hábitos anteriores e muito acabado pela mortificação, e atribuíam seu comportamento à fraqueza e à loucura.
Diante disse Francisco dava graças a Deus.
Mas o tumulto pelas praças e ruas da cidade durou tanto, ouvindo-se em toda parte o clamor dos que o insultavam, que, entre os muitos a cujos ouvidos chegou, estava também seu pai. 
Ouvindo o nome do filho, e que estava sendo comprometido nesse tipo de conversa por seus concidadãos, levantou-se imediatamente, não para libertá-lo mas para perdê-lo.
Seu pai o arrastou com modos indignos e afrontosos para casa. 
Sem qualquer compaixão, prendeu-o por muitos dias em um lugar escuro e, querendo dobrá-lo para seu modo de ver, agiu primeiro com palavras e depois com chicotadas e algemas.
Com isso tudo, o próprio Francisco ficou ainda mais pronto e decidido a seguir seu santo propósito, e sem se convencer com as palavras, nem se cansar da cadeia, não perdeu a paciência.

É solto pela mãe[3]
Aconteceu que seu pai precisou ausentar-se, pela urgência dos negócios, por algum tempo, deixando o homem de Deus preso no calabouço. A mãe, que ficou sozinha com ele em casa, e não aprovava o procedimento do marido, dirigiu-se ao filho com palavras ternas.
Mas, vendo que não conseguia fazê-lo mudar de opinião, sentiu seu coração materno se enternecer e, soltando as correntes, deixou-o sair.
Ele deu graças a Deus e voltou depressa para o lugar onde estivera antes. Provado pelas tentações, gozava agora de maior liberdade e, depois de tantas lutas, adquirira um ânimo mais sereno.
As dificuldades lhe deram maior segurança, e começou a andar mais confiante e livre por toda parte. Nesse meio tempo, o pai estava de volta. Não o tendo encontrado, acumulando seus desatinos, armou uma gritaria com sua mulher. 
Depois, irado e ameaçador, correu em busca do filho, decidido a expulsá-lo da região, se não conseguisse traze-lo de volta. 
Vendo que não poderia afastá-lo do caminho em que se metera, o pai cuidou apenas de reaver o dinheiro.
O homem de Deus teria querido gastá-lo e oferecê-lo todo para o sustento dos pobres e na construção daquele lugar mas, como não lhe tinha amor, não podia sofrer decepção alguma, nem se perturbou com a perda de um bem a que não tinha apego. 
Quando achou o dinheiro que ele, desprezador por excelência dos bens terrenos, ávido demais das riquezas celestes, tinha jogado a uma janela como lixo, acalmou-se um bocado o furor do pai irado. A recuperação foi como um refrigério para sua sede de avareza. 
Mais tarde, apresentou-o ao bispo da cidade, para que, renunciando em suas mãos à herança, devolvesse tudo que tinha. Ele não se recusou. Até se apressou alegremente a fazer o que pediam. 

Diante do bispo, não se demorou e nada o deteve: sem dizer nem esperar palavra, despiu e jogou suas roupas, devolvendo-as ao pai. 
Não guardou nem as calças: ficou completamente nu diante de todos.
O bispo, compreendendo sua atitude e admirando muito seu fervor e constância, levantou-se prontamente e o acolheu em seus braços, envolvendo-o no manto. 
Compreendeu claramente que era uma disposição divina e percebeu que os gestos do homem de Deus, que estava presenciando, encerravam algum mistério.
Tornou-se, desde então, seu protetor, animando-o, confortando-o e abraçando-o nas entranhas da caridade. 
Foi assim que Francisco tratou de desprezar a própria vida, deixando de lado toda solicitude mundana, para encontrar como um pobre a paz no caminho que lhe fora aberto: só a parede da carne separava-o ainda da visão celeste. 

Texto parafraseado por Edson Cortasio Sardinha, da primeira Biografia de Francisco de Assis - I Celano. 



[1] Capítulo 4 - Como, tendo vendido tudo, desprezou o dinheiro recebido. Tomás de Celano. Primeira Vida.
[2] Capítulo 5 - Como seu pai, perseguindo-o, o prendeu - Tomás de Celano. Primeira Vida.
[3] Capítulo 6 - Como sua mãe o soltou e como se despiu diante do bispo de Assis 

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