segunda-feira, 10 de junho de 2019

800 anos do Encontro de Francisco de Assis com o Sultão Al-Malik Al-Kamil


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O Encontro de Francisco de Assis e Sultão Al-Malik Al-Kamil


“No décimo terceiro ano de sua conversão, foi para a Síria e, embora recrudescessem cada dia terríveis e duros combates entre cristãos e pagãos, não teve medo de se apresentar ao sultão dos sarracenos, levando um companheiro. Quem vai poder contar a coragem com que se manteve diante dele, a fortaleza com que falou, a eloquência e a confiança com que respondeu aos que insultavam a lei cristã? Preso pelos guardas antes de chegar ao sultão, não se assustou nem quando foi ofendido e açoitado, não recuou diante de suplícios e não ficou com medo nem da ameaça de morte. Foi maltratado por muitos que eram hostis e adversos, mas o sultão o recebeu muito bem. Reverenciou-o quanto lhe foi possível e lhe ofereceu muitos presentes, tentando convertê-lo para o espírito mundano. Mas, quando viu que ele desprezava valentemente todas as coisas como se não passassem de esterco, ficou admiradíssimo e olhava para ele como um homem diferente. Ficou muito comovido com suas palavras e o ouviu de muito boa vontade. Apesar de tudo isso, o Senhor não satisfez o seu desejo, pois lhe estava reservando o privilégio de uma graça especial. (Tomás de Celano – Primeira Vida).

O sonho de Francisco se realiza – p 11.
Em 1219, finalmente Francisco consegue realizar seu sonho: partindo de Ancona no mês de junho com Pedro Cattani aporta em São João d’Acre onde encontra Frei Elias e seus companheiros que Já se encontravam lá. A partir daí, fim de julho ou começo de agosto, chega a Damieta, porto importante, situado no delta do Nilo que estava ocupado pelas tropas dos cruzados.
No dia 12 de abril, com efeito, Inocêncio III, edita a bula Quia maior por meio da qual convidava os prelados da Igreja a se reunirem em Concílio em Roma. No ano de 1215, havia lançado forte apelo aos cristãos do Ocidente pela Cruzada. Depois de ter traçado um perfil bastante sombrio do fundador do Islã, anunciava a derrota definitiva e última dos sarracenos: “Um filho da perdição, o pseudo-profeta Maomé se levantou. Por meio de incitações terrestres e prazeres carnais, fez com que muitos se desviassem da verdade. Sua perfídia durou até nossos dias. Temos fé em Deus de que o fim da Besta está próximo. O número (da Besta) segundo o Apocalipse de João, é 666 sendo que já se transcorreram certa de seiscentos anos (citação do autor Tolan)”.
A iniciativa da nova Cruzada – a quinta segundo a lista tradicional – deve-se ao sucesso da grande vitória dos reis de Castela e Aragão expulsando de suas terras os 11 adversários muçulmanos do sul da Espanha, com exceção da parte extrema que iria se constituir no reino de Granada.
Diante do clima de exaltação e de euforia, criado por este sucesso, o Papa, sem dúvida, teve a impressão que era o momento de dar o golpe mortal e decisivo. Tomou, então, todas as providências para que o empreendimento fosse bem sucedido: organização de uma Cruzada para reconquistar Jerusalém tomada dos cristãos por Saladino em 1187; restrições legais atingindo os muçulmanos e judeus vivendo em terra cristã para melhor distingui-los dos fiéis e colocar este últimos ao abrigo de sua influência; estrita limitação de relacionamentos, a começar pelo campo sexual, com os “blasfemadores de Cristo”, etc.
Parte desse programa foi implementada por ocasião do Concilio do Latrão IV, em particular por meio do cânon Ad liberandum que previa uma mobilização de três anos, acompanhada de uma trégua de Deus colocando fim às guerras no interior da cristandade, tudo para preparar a nova Cruzada e que ela tivesse êxito.
A Igreja convocou todos os cristãos em idade de portar armas a participarem da Cruzada em razão da fidelidade que deviam ao Cristo humilhado e ultrajado pela perda da Terra Santa.
Depois da morte de Inocêncio III este projeto foi retomado por seu sucessor Honório III (1216-1227) e um frota transportando alguns milhares de cruzados deixou a Itália rumo ao Egito, na primavera de 1218.
A finalidade prevista para a expedição era tomada de Damieta, principal porto de escoamento econômico do Egito no Mediterrâneo. As tropas desembarcaram na cidade a 29 de maio, quando o sultão “ayyûbide” Al-Malik Al-Kamil (o rei perfeito), sobrinho de Saladino, acabava de suceder seu pai Al-Adil.
A tomada da cidade, feita sem as previsões e medidas necessárias, não se concluía. Os combates se arrastavam. O novo Sultão, por sua vez, inexperiente, não soube aproveitar a falta de habilidade dos Cruzados.
Os participantes da Cruzada ignoravam tudo a respeito do país e viviam se desgastando em vãs querelas, de modo particular depois da chegada de um legado pontifício, o cardeal espanhol Pelágio que interferia em tudo, semeando a cizânia no campo cristão.
É nesse contexto que se situa a chegada de Francisco de Assis em Damieta, ao longo do verão de 1019. Sua presença nesse lugar, durante vários meses e sua tentativa de converter o Sultão à fé cristã são fatos solidamente atestados.
Todos os hagiógrafos, desde Tomás de Celano que escreveu sua Vida em 1228-1229, pouco depois de sua morte, até Boaventura de Bagnoregio, autor, no começo dos anos 1260, da Legenda Maior, o atestam.
Há também outros testemunhos exteriores à Ordem franciscana: o mais antigo é do prelado francês Tiago de Vitry, bispo de São João d’Acre, desde 1216 e que participou da Cruzada e menciona a presença de Francisco em Damieta, em dois de seus escritos: uma carta que endereçou do Egito, em 1220, a Honório III e uma passagem de sua História ocidental, redigida em Acre, na qual demoradamente escreve sobre os primórdios dos Frades Menores.
Mencionemos ainda, duas crônicas de origem leiga que, redigidas na Terra Santa pouco depois dos acontecimentos, aportam complementos importantes: crônica de Ernoul, escudeiro de Belian II de Ibelin, que deixou um relato em francês da terceira à quinta Cruzada e continuando a crônica latina de Guilherme de Tyr.
Este texto nos chegou com o trabalho e resumo de Bernardo, o Tesoureiro ( 1227-1229); um pouco mais tarde, em torno de 1229-1231, o autor anônimo da Legenda de Heráclio fornece informações preciosas sobre o encontro de Francisco com o Sultão.
Atribui o fracasso final da quinta Cruzada aos pecados dos cruzados. O testemunho desses cronistas, que pertenciam ao círculo de João de Brienne, rei de Jerusalém, presente em Damieta, em 1219, é extremamente precioso já que estavam muito bem informados em questões relativas ao além mar e às Cruzadas e que consideraram o gesto de Francisco uma loucura, porque a seus olhos não era possível acordo entre a Cristandade e o Islã.
Por isso tudo, mesmo havendo contradições entre os documentos não se pode negar que Francisco lá esteve.
Quais os objetivos de Francisco quando desembarcou em Damieta e o que fez ele durante os meses em que passou diante da cidade sitiada entre julho-agosto e novembro de 1219?
Certamente nunca passou por sua cabeça associar-se à Cruzada na qualidade de combatente. Seu estado de vida de religioso o impedia de pegar em armas e nada estava tão longe de seu estilo de vida, avesso a toda forma de violência, nem como capelão militar.
Pode-se dizer que naquele contexto ele via uma ocasião de colocar à prova o ideal evangélico dos Frades Menores. De fato, Tiago de Vitry lamenta amargamente, em sua carta de 1220 ao Papa que vários membros de seu relacionamento, tanto clérigos como leigos, fascinados pela personalidade e exemplo de Francisco, o abandonaram durante o cerco de Damieta para seguir o Poverello e entrar em sua Ordem.
Logo que chegou, Francisco se deu conta que a situação estava bloqueada no plano militar e que as armas não levariam a nada. O cerco da cidade já durava mais de um ano sem grandes resultados e uma ofensiva lançada pelos cruzados em 29 de agosto de 1219 contra as tropas do Sultão redundaram num fracasso sanguinolento.
Foi neste momento que Francisco, aproveitando-se de uma trégua deixou o acampamento cristão e foi para o campo adversário com um único companheiro, Frei Iluminado de Rieti depois de ter comunicado ao legado Pelágio que lhe recusou todo salvo-conduto e não deixou de manifestar a desaprovação pelo que estava pretendendo fazer.
Francisco teria gritado: “Sudam, sudam” (sultão, sultão) ao aproximar-se das fileiras dos inimigos. Foi preso pelos soldados egípcios que o conduziram a seu mestre. Nenhuma das fontes da época afirma que tenha sido objeto de violências.
Na realidade o fato em si não tem nada tão incrível porque este cristão por ser alguém que estivesse renegando sua fé e quisesse mudar de campo de batalha ou de religião, ou um emissário dos cruzados encarregado de uma mensagem diplomáticas.

O que as fontes falam desse encontro? P.14
A respeito deste famoso encontro, registrado por muitos cronistas e hagiógrafos, e imortalizado por Giotto no ciclo de afrescos que pintou em torno de 1300 na Basílica superior de Assis, há ao menos duas tradições: para os cronistas exteriores à Ordem franciscana, Francisco teria procurado – na realidade em vão – converter o sultão e seu povo. Tiago de Vitry, testemunha do acontecimento, assim escreve em sua carta de 1220 ao Papa: “Ardente de zelo pela fé cristã, (Francisco) não teve medo em atravessar o campo do inimigo, e depois de ter pregado por uns dias a Palavra de Deus aos sarracenos, não conseguiu grandes resultados (modicum profecit)”.
Retomando o tema em sua Historia occidentalis em 1226, o referido prelado afirma que a simples presença de Francisco transformara o Sultão do Egito de animal feroz que era no início, em ouvinte dócil, tendo permitido que Francisco lhe dirigisse a palavra por alguns dias.
Temendo, no entanto, que ele viesse a converter seus súditos, determinou o sultão que o Poverello fosse reconduzido ao campo dos cruzados, pedindo que orasse a Deus pedindo que ele lhe revelasse a lei e a fé que mais lhe agradavam. Nesse meio tempo acontece o fracasso da Cruzada e Francisco já estava sendo considerado um santo.
Em seu relato, Tiago de Vitry engrandece e dramatiza o acontecimento acentuando que o Sultão ficou muito impressionado com as palavras de Francisco e pouco faltou para se converter à fé cristã.
Para os autores franciscanos, ao contrário, o Poverello teria ido ter com o Sultão ansiando pelo martírio. Desta maneira, na Vita prima de Tomás de Celano o fim trágico do martírio seria prefigurado pelos maus-tratos infligidos pelos soldados do Sultão que o haviam prendido.
Al-Kamil tê-lo-ia tratado com amabilidade e teria ouvido o Santo defender o cristianismo contra os doutores da lei muçulmana que estavam à sua volta. Depois da disputa oratória, o Sultão quis agradar a Francisco oferecendo-lhe presentes que ele recusou dizendo “desprezá-los como esterco”, o que teria causado admiração ao soberano.
Não querendo empalidecer a imagem de seu herói pela evocação de um fracasso, o hagiógrafo conclui sua elaboração justificando que a recusa de Deus de lhe dar o martírio tinha uma explicação: uma graça singular estava reservada para ele no alto do Alverne com a impressão dos estigmas de Cristo em seu corpo.
Na Legenda Maior (IX, 8), Boaventura afirma ter obtido um relato de Frei Iluminado de Rieti, único companheiro de Francisco que estava com ele na ocasião: depois de terem sido maltratados pelos soldados que o haviam prendido, os dois foram levados à presença do Sultão que os acolheu com benevolência e que questionou a respeito do motivo daquela visita. Francisco respondera “que tinha sido enviado de além dos mares, não por qualquer homem, mas pelo Deus Altíssimo; que vinha indicar-lhe e a seu povo, o caminho da salvação e anunciar-lhe o Evangelho da verdade”.
“Depois pregou ao Sultão os mistérios da Trindade e da Redenção”. Dando-se conta que o Sultão hesitava em se converter, propôs que se submetesse ao julgamento de Deus propondo-lhe uma “ordália” (um desafio): os sacerdotes muçulmanos e entrariam no fogo e ver-se-ia, concluída a prova, qual seria a religião superior. Os “clérigos” muçulmanos rejeitaram a prova por considerarem-na uma loucura. Francisco propôs ao Sultão de enfrentar a prova sozinho. Este último recusou. Ficou no espírito do Sultão admiração por Francisco e até mesmo um certo desejo de se converter ao cristianismo. Não o fez temendo reação por parte de seu povo. Ofereceu então, presentes a Francisco que ele não aceitou retornando ao acampamento dos cristãos porque não via em Al-Kamil sinal algum de autêntica piedade.

Teria Francisco realmente buscado o martírio? P.18
 As Fontes Franciscanas parecem afirmar que Francisco estava buscando o martírio. Hoje, no entanto, há os que não têm tanta certeza assim. Pensam que, com isso, poder-se-ia estar prestando ao herói uma atitude suicida ou atribuindo-lhe comportamento irresponsável.
Pode-se dizer que o martírio estava, efetivamente, nas perspectivas de Francisco pelo que se pode saber de sua mentalidade e de sua cultura. A maior parte dos santos dos quais se ouvia falar e cujas imagens podiam ser vistas nas igrejas da Úmbria não eram de mártires a começar por São Rufino, o primeiro bispo de Assis, cujas relíquias tinham sido objeto de transladação solene na catedral da cidade de Francisco?
Além disto, sua vocação e a de sua Ordem não tinha sido alimentada pelo desejo de seguir o exemplo dos apóstolos que deram a vida em testemunho da fé? Contrariamente ao que se costuma por vezes afirmar, a busca do martírio por parte de Francisco não estava em contradição com seu desejo de seguir precisamente a Cristo que morre na cruz para abrir o caminho da salvação para a humanidade. Enfrentar tribulações e perigos, inclusive a perda da vida, para propagar a fé cristã constituiu desde as origens um elemento que marcou a sensibilidade franciscana; Jordão de Jano afirma que “quando se recrutavam voluntários que fossem para a Alemanha por ocasião do Capítulo Geral de 1221 “levantaram-se cerca de 90 frades abrasados pelo desejo do martírio, e até mesmo ele, pensando que iriam encontrar o martírio” (Jordão de Jano, 11-18).
Sabemos que Clara de Assis, em tantos aspectos tão próxima de Francisco, lamentava que sua condição de reclusa a impedia de se fazer martirizar no Marrocos quando teve notícia do fim trágico dos cinco franciscanos que tinham sido executados em Marrakesh em 1220.
Chegando ao Egito, Francisco, muito provavelmente, partilhava dos preconceitos dos cristãos de seu tempo a respeito do Islã. Sem dúvida pouco conhecia a respeito do muçulmanos a não ser pelas letras das canções de gesta em que eram apresentados como idólatras, adorando estátuas de Maomé e de um deus misterioso chamado Tervagant, homens luxuriosos e fanáticos.
Não há nenhuma possibilidade que Francisco tenha tido acesso à tradução do Corão em latim que havia sido feita na Espanha por volta de 1140, por ordem do abade de Cluny, Pedro o Venerável, desejoso de refutar os erros dos “filhos de Agar”. Este texto só se tornou conhecido por bem poucos manuscritos e não deve ter sido conhecido na Itália.
Resolvendo encontrar-se com o Sultão, Francisco estava sinceramente convencido que seria martirizado devido à sua fé. Aceitava correr esse risco. Não se tratava de um perigo imaginário. Entre os Frades Menores que ele enviara em missão por ocasião do Capítulo Geral de Pentecostes de 1219, até antes de sua partida para o Egito, cinco foram para o meio dos muçulmanos na Espanha e chegaram efetivamente a seu destino. Dirigindo-se a Sevilha começaram a pregar contra Maomé. Depois de terem sido presos e encarcerados foram enviados a Marrakesh onde Dom Pedro, irmão do rei de Portugal, que comandava um exército de mercenários a serviço do sultão Abu Ya’qub Yusuf alMustansir (1213-1224) os libertou.
Não levando em consideração os conselhos que lhes davam seus protetores cristãos recomeçaram a pregar em público em Marrakesh, o que fez com que sultão os banisse da cidade. Depois de pouco tempo voltaram, o que lhes valeu serem novamente encarcerados. Uma vez libertados começaram a atacar publicamente o credo do Islã, o que lhes resultou na decapitação em 16 de janeiro de 1220.
Alguns meses depois seus restos mortais foram levados para Portugal, onde foram ocasião de muitos milagres. Vendo-os passar na abadia de Santa Cruz de Coimbra – o jovem cônego Antônio – o futuro Santo Antônio de Pádua – tomou a decisão de entrar na Ordem Franciscana.
Diferentemente dos frades executados no Marrocos, parece muito pouco provável que Francisco pessoalmente tenha atacado Maomé diante dos muçulmanos presentes. Se tivesse feito não teria podido falar durante um período de tempo bastante longo sem ter sido interrompido e mesmo castigado.
O Sultão parece ter se sensibilizado já que o deixou falar. O encontro dos dois homens resultou em que colocassem em comum as ideias que um se fazia do outro e de sua religião. Al-Kamil logo se deu conta que tal personagem desarmado e vestido de maneira tão curiosa não era um cruzado, mas um homem de Deus e Francisco não encontrou no Sultão o perseguidor que esperava. Tudo se passou mesmo de uma maneira desconcertante para os dois protagonistas, o que constituiu a razão pela qual esse face a face se revestiu de importância histórica e não cessou de fascinar os espíritos ao longo dos séculos.
É vão querer saber o que se passou realmente entre Francisco e o Sultão nesse dia de setembro de 1219. O simples fato de que tenha acontecido um tal encontro por si já constitui uma novidade, ao menos para o Ocidente. Controvérsias religiosas públicas na presença de um soberano costumavam acontecer no Oriente: Al-Kamil presidiu uma no Egito da qual participaram do lado cristãos, os patriarcas copta e o dos melquitas. Resta saber – o que é o mais difícil – que assuntos ocuparam o tempo do encontro.
Testemunhas diretas e próximas do evento mencionam todas uma “pregação da palavra de Deus” da parte de Francisco que consistiu em exposição dos princípios da fé cristã e num apelo à conversão. Tal “discurso” teria suscitado no Sultão uma reação de estima para com o pregador, do qual apreciou a coragem e suas convicções.
As fontes decorrentes do ambiente de Jean de Brienne falam mais de uma confrontação, de um debate contraditório entre Francisco e os doutores da lei islâmica, o que parece estranho já que Francisco não dominava a linguagem nem os argumentos dos teólogos.
Boaventura, por sua vez, introduziu o relato do repto tal como havia relatado Frei Iluminato, dizendo assim que era necessária uma intervenção sobrenatural para aceder à fé. Estamos no campo das hipóteses. Devemos confessar que não há razão sólida para optar por uma ou outra visão.
Não se pode deixar de observar, no entanto, segundo a crônica de Ernoul, próxima do acontecimento e bem informada, Francisco teria declarado ao cardeal Pelágio que queria dirigir-se aos Sarracenos desde que isto pudesse resultar num grande bem. Que “grande bem” poderia justificar uma iniciativa de tanto risco? A conversão do Sultão e de sua “entourage” (roda de amizade) ao cristianismo como no tempo dos reinos bárbaros da Alta Idade Média?
Francisco não era tão ingênuo ou presunçoso para pensar que iria imediatamente conseguir este objetivo. Durante essa entrevista deve ter sido abordado o tema da guerra e da paz como dá a entender um texto de origem franciscana, infelizmente não datado, intitulado “Palavras de Frei Iluminado”, segundo o qual Francisco teria declarado ao sultão: “É justo que os cristãos invadam a terra em que habitais, porque blasfemaste o nome de Cristo e afastastes de seu culto todos os que pudestes fazê-lo. Se quereis, no entanto, reconhecer a Cristo, confessar e adorar o Criador e Redentor, se assim os cristãos haveriam de amar-vos com se amam a eles mesmos”.
Pode-se supor que Francisco tenha sugerido ao Sultão que concedendo aos cristãos o livre acesso a Jerusalém e não haveria mais da parte deles empreendimentos belicosos (ou seja, conquistar a cidade manu militari). A Cruzada perderia assim uma de suas motivações fundamentais: a reivindicação do direito para os fiéis de Cristo de se dirigirem pacificamente, sem taxas aos lugares santos da Palestina.
Pode-se encontrar um eco disto na proposta que o Sultão faria aos cruzados algumas semanas mais tarde, quando estes últimos tinham tomado Damieta, de restituir-lhes Jerusalém em troca da evacuação rápida do Egito.
Esse compromisso que teria o apoio de Jean de Brienne e da maior parte dos barões francos, foi rejeitado pelo cardeal Pelágio que era de parecer de continuar a luta à exaustão contra o Islã e até o momento da capitulação pela derrota de Mansourah, 30 de agosto de 1221.
A ideia foi retomada por Al-Kamil e o imperador Frederico II por ocasião das negociações que haveriam de terminar, em 1229, com o tratado de Jafa. Por meio dele, Jerusalém – com exceção da esplanada das Mesquitas, Belém e Nazaré, bem como um corredor de acesso ao mar foram restituídos aos cristãos, o que possibilitou a Frederico II ser coroado rei de Jerusalém na Igreja do Santo Sepulcro sem se ter que verter uma gota de sangue.
O imperador excomungado teria realizado o sonho de Francisco, ou em todo caso realizado uma das solicitações que o Poverello havia dirigido a Al-Kamil dez anos antes. Não parece absurdo ao menos levantar a hipótese.

O que Francisco realmente pensava da Cruzada? P.19
A seu modo de ver não havia contradição entre a busca do martírio e o desejo de converter os infiéis, como entre Cruzada e missão. Como bem se deu conta G. K. Chesterton, o Pobre de Assis “abordou a questão de maneira muito pessoal e peculiar, mas era essa a maneira com que ele lidava com quase tudo. Era de certo modo uma ideia simples, assim como a maioria de suas ideias eram simples. Mas não era um ideia tola; havia muita coisa a dizer a favor dela e ela podia ter dado certo. Era simplesmente a ideia de que era melhor ser cristãos do que destruir muçulmanos”.
Parece ter se produzido uma evolução em Francisco depois de seu encontro com o Sultão Al-Kamil. Damieta fora finalmente tomada pelos cruzados a 5 de novembro de 1219. Uma conquista tão esperada foi acompanhada de massacres e atos de extrema violência. Dando crédito ao autor do Heraclito, que foi testemunha dos fatos, Francisco “viu o mal e o pecado que começavam a crescer entre as pessoas das tropas, o que lhe desagradou. Partiu e foi diretamente para a Síria antes voltar para seu país”.
Profundamente contrariado com o comportamento de seus correligionários, distante daquilo que deveria ser a seus olhos o comportamento de “cavaleiro de Cristo”, ele preferiu tomar distância do que evoluía numa ideia diferente daquilo que considerava a finalidade de Cruzada.
É mesmo provável que depois dos acontecimentos não tenha ido a Jerusalém – o Papa havia proibido aos cristãos de propiciar recursos financeiros aos sarracenos já que cobravam taxas dos peregrinos – mas de ter passado algum tempo com os seus confrades no que restava dos Estados latinos.
Sem dúvida, esta permanência na Terra Santa e as boas recordações que Francisco havia deixado aos muçulmanos explicam o fato de que os Frades Menores foram, em 1333 – os primeiros, e por longo tempo – os únicos religiosos latinos autorizados pelo Sultão a voltar a Jerusalém e aos quais foi confiado, a pedido do rei de Nápoles, Roberto d’Anjou, a guarda de alguns lugares cristãos e que conservam até nossos dias.

Bibliografia:
AUGUSTO. Frei Zilmar, OFM “Os Franciscanos: PROFETAS DO DIÁLOGO, DO RESPEITO E DA PAZ - 800 anos do Encontro de Francisco de Assis e Sultão Al-Malik Al-Kamil. - Subsídio para estudo em fraternidade em preparação ao encontro celebrativo. CFFB. Agudos, 2019.

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