O Encontro de Francisco de Assis
e Sultão Al-Malik Al-Kamil
“No décimo terceiro ano de sua conversão, foi
para a Síria e, embora recrudescessem cada dia terríveis e duros combates entre
cristãos e pagãos, não teve medo de se apresentar ao sultão dos sarracenos,
levando um companheiro. Quem vai poder contar a coragem com que se manteve
diante dele, a fortaleza com que falou, a eloquência e a confiança com que
respondeu aos que insultavam a lei cristã? Preso pelos guardas antes de chegar
ao sultão, não se assustou nem quando foi ofendido e açoitado, não recuou diante
de suplícios e não ficou com medo nem da ameaça de morte. Foi maltratado por
muitos que eram hostis e adversos, mas o sultão o recebeu muito bem.
Reverenciou-o quanto lhe foi possível e lhe ofereceu muitos presentes, tentando
convertê-lo para o espírito mundano. Mas, quando viu que ele desprezava
valentemente todas as coisas como se não passassem de esterco, ficou
admiradíssimo e olhava para ele como um homem diferente. Ficou muito comovido
com suas palavras e o ouviu de muito boa vontade. Apesar de tudo isso, o Senhor
não satisfez o seu desejo, pois lhe estava reservando o privilégio de uma graça
especial. (Tomás de Celano – Primeira Vida).
O sonho de
Francisco se realiza – p 11.
Em 1219, finalmente Francisco
consegue realizar seu sonho: partindo de Ancona no mês de junho com Pedro
Cattani aporta em São João d’Acre onde encontra Frei Elias e seus companheiros
que Já se encontravam lá. A partir daí, fim de julho ou começo de agosto, chega
a Damieta, porto importante, situado no delta do Nilo que estava ocupado pelas
tropas dos cruzados.
No dia 12 de abril, com efeito,
Inocêncio III, edita a bula Quia maior por meio da qual convidava os prelados
da Igreja a se reunirem em Concílio em Roma. No ano de 1215, havia lançado
forte apelo aos cristãos do Ocidente pela Cruzada. Depois de ter traçado um
perfil bastante sombrio do fundador do Islã, anunciava a derrota definitiva e
última dos sarracenos: “Um filho da perdição, o pseudo-profeta Maomé se
levantou. Por meio de incitações terrestres e prazeres carnais, fez com que
muitos se desviassem da verdade. Sua perfídia durou até nossos dias. Temos fé
em Deus de que o fim da Besta está próximo. O número (da Besta) segundo o
Apocalipse de João, é 666 sendo que já se transcorreram certa de seiscentos
anos (citação do autor Tolan)”.
A iniciativa da nova Cruzada – a
quinta segundo a lista tradicional – deve-se ao sucesso da grande vitória dos
reis de Castela e Aragão expulsando de suas terras os 11 adversários muçulmanos
do sul da Espanha, com exceção da parte extrema que iria se constituir no reino
de Granada.
Diante do clima de exaltação e de
euforia, criado por este sucesso, o Papa, sem dúvida, teve a impressão que era
o momento de dar o golpe mortal e decisivo. Tomou, então, todas as providências
para que o empreendimento fosse bem sucedido: organização de uma Cruzada para
reconquistar Jerusalém tomada dos cristãos por Saladino em 1187; restrições
legais atingindo os muçulmanos e judeus vivendo em terra cristã para melhor
distingui-los dos fiéis e colocar este últimos ao abrigo de sua influência;
estrita limitação de relacionamentos, a começar pelo campo sexual, com os
“blasfemadores de Cristo”, etc.
Parte desse programa foi
implementada por ocasião do Concilio do Latrão IV, em particular por meio do
cânon Ad liberandum que previa uma mobilização de três anos, acompanhada de uma
trégua de Deus colocando fim às guerras no interior da cristandade, tudo para
preparar a nova Cruzada e que ela tivesse êxito.
A Igreja convocou todos os
cristãos em idade de portar armas a participarem da Cruzada em razão da
fidelidade que deviam ao Cristo humilhado e ultrajado pela perda da Terra
Santa.
Depois da morte de Inocêncio III
este projeto foi retomado por seu sucessor Honório III (1216-1227) e um frota
transportando alguns milhares de cruzados deixou a Itália rumo ao Egito, na
primavera de 1218.
A finalidade prevista para a
expedição era tomada de Damieta, principal porto de escoamento econômico do
Egito no Mediterrâneo. As tropas desembarcaram na cidade a 29 de maio, quando o
sultão “ayyûbide” Al-Malik Al-Kamil (o rei perfeito), sobrinho de Saladino,
acabava de suceder seu pai Al-Adil.
A tomada da cidade, feita sem as
previsões e medidas necessárias, não se concluía. Os combates se arrastavam. O
novo Sultão, por sua vez, inexperiente, não soube aproveitar a falta de
habilidade dos Cruzados.
Os participantes da Cruzada
ignoravam tudo a respeito do país e viviam se desgastando em vãs querelas, de
modo particular depois da chegada de um legado pontifício, o cardeal espanhol
Pelágio que interferia em tudo, semeando a cizânia no campo cristão.
É nesse contexto que se situa a
chegada de Francisco de Assis em Damieta, ao longo do verão de 1019. Sua
presença nesse lugar, durante vários meses e sua tentativa de converter o
Sultão à fé cristã são fatos solidamente atestados.
Todos os hagiógrafos, desde Tomás
de Celano que escreveu sua Vida em 1228-1229, pouco depois de sua morte, até
Boaventura de Bagnoregio, autor, no começo dos anos 1260, da Legenda Maior, o
atestam.
Há também outros testemunhos
exteriores à Ordem franciscana: o mais antigo é do prelado francês Tiago de
Vitry, bispo de São João d’Acre, desde 1216 e que participou da Cruzada e
menciona a presença de Francisco em Damieta, em dois de seus escritos: uma
carta que endereçou do Egito, em 1220, a Honório III e uma passagem de sua
História ocidental, redigida em Acre, na qual demoradamente escreve sobre os
primórdios dos Frades Menores.
Mencionemos ainda, duas crônicas
de origem leiga que, redigidas na Terra Santa pouco depois dos acontecimentos,
aportam complementos importantes: crônica de Ernoul, escudeiro de Belian II de
Ibelin, que deixou um relato em francês da terceira à quinta Cruzada e
continuando a crônica latina de Guilherme de Tyr.
Este texto nos chegou com o
trabalho e resumo de Bernardo, o Tesoureiro ( 1227-1229); um pouco mais tarde,
em torno de 1229-1231, o autor anônimo da Legenda de Heráclio fornece
informações preciosas sobre o encontro de Francisco com o Sultão.
Atribui o fracasso final da
quinta Cruzada aos pecados dos cruzados. O testemunho desses cronistas, que
pertenciam ao círculo de João de Brienne, rei de Jerusalém, presente em
Damieta, em 1219, é extremamente precioso já que estavam muito bem informados
em questões relativas ao além mar e às Cruzadas e que consideraram o gesto de
Francisco uma loucura, porque a seus olhos não era possível acordo entre a
Cristandade e o Islã.
Por isso tudo, mesmo havendo
contradições entre os documentos não se pode negar que Francisco lá esteve.
Quais os objetivos de Francisco
quando desembarcou em Damieta e o que fez ele durante os meses em que passou
diante da cidade sitiada entre julho-agosto e novembro de 1219?
Certamente nunca passou por sua
cabeça associar-se à Cruzada na qualidade de combatente. Seu estado de vida de religioso
o impedia de pegar em armas e nada estava tão longe de seu estilo de vida,
avesso a toda forma de violência, nem como capelão militar.
Pode-se dizer que naquele
contexto ele via uma ocasião de colocar à prova o ideal evangélico dos Frades
Menores. De fato, Tiago de Vitry lamenta amargamente, em sua carta de 1220 ao
Papa que vários membros de seu relacionamento, tanto clérigos como leigos,
fascinados pela personalidade e exemplo de Francisco, o abandonaram durante o
cerco de Damieta para seguir o Poverello e entrar em sua Ordem.
Logo que chegou, Francisco se deu
conta que a situação estava bloqueada no plano militar e que as armas não
levariam a nada. O cerco da cidade já durava mais de um ano sem grandes
resultados e uma ofensiva lançada pelos cruzados em 29 de agosto de 1219 contra
as tropas do Sultão redundaram num fracasso sanguinolento.
Foi neste momento que Francisco,
aproveitando-se de uma trégua deixou o acampamento cristão e foi para o campo
adversário com um único companheiro, Frei Iluminado de Rieti depois de ter
comunicado ao legado Pelágio que lhe recusou todo salvo-conduto e não deixou de
manifestar a desaprovação pelo que estava pretendendo fazer.
Francisco teria gritado: “Sudam,
sudam” (sultão, sultão) ao aproximar-se das fileiras dos inimigos. Foi preso
pelos soldados egípcios que o conduziram a seu mestre. Nenhuma das fontes da
época afirma que tenha sido objeto de violências.
Na realidade o fato em si não tem
nada tão incrível porque este cristão por ser alguém que estivesse renegando
sua fé e quisesse mudar de campo de batalha ou de religião, ou um emissário dos
cruzados encarregado de uma mensagem diplomáticas.
O que as fontes
falam desse encontro? P.14
A respeito deste famoso encontro,
registrado por muitos cronistas e hagiógrafos, e imortalizado por Giotto no
ciclo de afrescos que pintou em torno de 1300 na Basílica superior de Assis, há
ao menos duas tradições: para os cronistas exteriores à Ordem franciscana,
Francisco teria procurado – na realidade em vão – converter o sultão e seu
povo. Tiago de Vitry, testemunha do acontecimento, assim escreve em sua carta
de 1220 ao Papa: “Ardente de zelo pela fé cristã, (Francisco) não teve medo em
atravessar o campo do inimigo, e depois de ter pregado por uns dias a Palavra
de Deus aos sarracenos, não conseguiu grandes resultados (modicum profecit)”.
Retomando o tema em sua Historia
occidentalis em 1226, o referido prelado afirma que a simples presença de
Francisco transformara o Sultão do Egito de animal feroz que era no início, em
ouvinte dócil, tendo permitido que Francisco lhe dirigisse a palavra por alguns
dias.
Temendo, no entanto, que ele
viesse a converter seus súditos, determinou o sultão que o Poverello fosse
reconduzido ao campo dos cruzados, pedindo que orasse a Deus pedindo que ele
lhe revelasse a lei e a fé que mais lhe agradavam. Nesse meio tempo acontece o
fracasso da Cruzada e Francisco já estava sendo considerado um santo.
Em seu relato, Tiago de Vitry
engrandece e dramatiza o acontecimento acentuando que o Sultão ficou muito
impressionado com as palavras de Francisco e pouco faltou para se converter à
fé cristã.
Para os autores franciscanos, ao
contrário, o
Poverello teria ido ter com o Sultão ansiando pelo martírio. Desta maneira, na
Vita prima de Tomás de Celano o fim trágico do martírio seria prefigurado pelos
maus-tratos infligidos pelos soldados do Sultão que o haviam prendido.
Al-Kamil tê-lo-ia tratado com
amabilidade e teria ouvido o Santo defender o cristianismo contra os doutores
da lei muçulmana que estavam à sua volta. Depois da disputa oratória, o Sultão
quis agradar a Francisco oferecendo-lhe presentes que ele recusou dizendo
“desprezá-los como esterco”, o que teria causado admiração ao soberano.
Não querendo empalidecer a imagem
de seu herói pela evocação de um fracasso, o hagiógrafo conclui sua elaboração
justificando que a recusa de Deus de lhe dar o martírio tinha uma explicação:
uma graça singular estava reservada para ele no alto do Alverne com a impressão
dos estigmas de Cristo em seu corpo.
Na Legenda Maior (IX, 8),
Boaventura afirma ter obtido um relato de Frei Iluminado de Rieti, único
companheiro de Francisco que estava com ele na ocasião: depois de terem sido
maltratados pelos soldados que o haviam prendido, os dois foram levados à
presença do Sultão que os acolheu com benevolência e que questionou a respeito
do motivo daquela visita. Francisco respondera “que tinha sido enviado de além
dos mares, não por qualquer homem, mas pelo Deus Altíssimo; que vinha
indicar-lhe e a seu povo, o caminho da salvação e anunciar-lhe o Evangelho da
verdade”.
“Depois pregou ao Sultão os
mistérios da Trindade e da Redenção”. Dando-se conta que o Sultão hesitava em
se converter, propôs que se submetesse ao julgamento de Deus propondo-lhe uma
“ordália” (um desafio): os sacerdotes muçulmanos e entrariam no fogo e
ver-se-ia, concluída a prova, qual seria a religião superior. Os “clérigos”
muçulmanos rejeitaram a prova por considerarem-na uma loucura. Francisco propôs
ao Sultão de enfrentar a prova sozinho. Este último recusou. Ficou no espírito
do Sultão admiração por Francisco e até mesmo um certo desejo de se converter
ao cristianismo. Não o fez temendo reação por parte de seu povo. Ofereceu
então, presentes a Francisco que ele não aceitou retornando ao acampamento dos
cristãos porque não via em Al-Kamil sinal algum de autêntica piedade.
Teria Francisco
realmente buscado o martírio? P.18
As Fontes Franciscanas parecem afirmar que
Francisco estava buscando o martírio. Hoje, no entanto, há os que não têm tanta
certeza assim. Pensam que, com isso, poder-se-ia estar prestando ao herói uma
atitude suicida ou atribuindo-lhe comportamento irresponsável.
Pode-se dizer que o martírio
estava, efetivamente, nas perspectivas de Francisco pelo que se pode saber de
sua mentalidade e de sua cultura. A maior parte dos santos dos quais se ouvia
falar e cujas imagens podiam ser vistas nas igrejas da Úmbria não eram de
mártires a começar por São Rufino, o primeiro bispo de Assis, cujas relíquias
tinham sido objeto de transladação solene na catedral da cidade de Francisco?
Além disto, sua vocação e a de
sua Ordem não tinha sido alimentada pelo desejo de seguir o exemplo dos
apóstolos que deram a vida em testemunho da fé? Contrariamente ao que se
costuma por vezes afirmar, a busca do martírio por parte de Francisco não
estava em contradição com seu desejo de seguir precisamente a Cristo que morre
na cruz para abrir o caminho da salvação para a humanidade. Enfrentar
tribulações e perigos, inclusive a perda da vida, para propagar a fé cristã
constituiu desde as origens um elemento que marcou a sensibilidade franciscana;
Jordão de Jano afirma que “quando se recrutavam voluntários que fossem para a
Alemanha por ocasião do Capítulo Geral de 1221 “levantaram-se cerca de 90
frades abrasados pelo desejo do martírio, e até mesmo ele, pensando que iriam
encontrar o martírio” (Jordão de Jano, 11-18).
Sabemos que Clara de Assis, em
tantos aspectos tão próxima de Francisco, lamentava que sua condição de reclusa
a impedia de se fazer martirizar no Marrocos quando teve notícia do fim trágico
dos cinco franciscanos que tinham sido executados em Marrakesh em 1220.
Chegando ao Egito, Francisco,
muito provavelmente, partilhava dos preconceitos dos cristãos de seu tempo a
respeito do Islã. Sem dúvida pouco conhecia a respeito do muçulmanos a não ser
pelas letras das canções de gesta em que eram apresentados como idólatras,
adorando estátuas de Maomé e de um deus misterioso chamado Tervagant, homens
luxuriosos e fanáticos.
Não há nenhuma possibilidade que
Francisco tenha tido acesso à tradução do Corão em latim que havia sido feita
na Espanha por volta de 1140, por ordem do abade de Cluny, Pedro o Venerável,
desejoso de refutar os erros dos “filhos de Agar”. Este texto só se tornou
conhecido por bem poucos manuscritos e não deve ter sido conhecido na Itália.
Resolvendo encontrar-se com o
Sultão, Francisco estava sinceramente convencido que seria martirizado devido à
sua fé. Aceitava correr esse risco. Não se tratava de um perigo imaginário.
Entre os Frades Menores que ele enviara em missão por ocasião do Capítulo Geral
de Pentecostes de 1219, até antes de sua partida para o Egito, cinco foram para
o meio dos muçulmanos na Espanha e chegaram efetivamente a seu destino.
Dirigindo-se a Sevilha começaram a pregar contra Maomé. Depois de terem sido
presos e encarcerados foram enviados a Marrakesh onde Dom Pedro, irmão do rei
de Portugal, que comandava um exército de mercenários a serviço do sultão Abu
Ya’qub Yusuf alMustansir (1213-1224) os libertou.
Não levando em consideração os
conselhos que lhes davam seus protetores cristãos recomeçaram a pregar em
público em Marrakesh, o que fez com que sultão os banisse da cidade. Depois de
pouco tempo voltaram, o que lhes valeu serem novamente encarcerados. Uma vez
libertados começaram a atacar publicamente o credo do Islã, o que lhes resultou
na decapitação em 16 de janeiro de 1220.
Alguns meses depois seus restos
mortais foram levados para Portugal, onde foram ocasião de muitos milagres.
Vendo-os passar na abadia de Santa Cruz de Coimbra – o jovem cônego Antônio – o
futuro Santo Antônio de Pádua – tomou a decisão de entrar na Ordem Franciscana.
Diferentemente dos frades
executados no Marrocos, parece muito pouco provável que Francisco pessoalmente
tenha atacado Maomé diante dos muçulmanos presentes. Se tivesse feito não teria
podido falar durante um período de tempo bastante longo sem ter sido interrompido
e mesmo castigado.
O Sultão parece ter se
sensibilizado já que o deixou falar. O encontro dos dois homens resultou em que
colocassem em comum as ideias que um se fazia do outro e de sua religião.
Al-Kamil logo se deu conta que tal personagem desarmado e vestido de maneira
tão curiosa não era um cruzado, mas um homem de Deus e Francisco não encontrou
no Sultão o perseguidor que esperava. Tudo se passou mesmo de uma maneira
desconcertante para os dois protagonistas, o que constituiu a razão pela qual
esse face a face se revestiu de importância histórica e não cessou de fascinar
os espíritos ao longo dos séculos.
É vão querer saber o que se
passou realmente entre Francisco e o Sultão nesse dia de setembro de 1219. O
simples fato de que tenha acontecido um tal encontro por si já constitui uma
novidade, ao menos para o Ocidente. Controvérsias religiosas públicas na
presença de um soberano costumavam acontecer no Oriente: Al-Kamil presidiu uma
no Egito da qual participaram do lado cristãos, os patriarcas copta e o dos
melquitas. Resta saber – o que é o mais difícil – que assuntos ocuparam o tempo
do encontro.
Testemunhas diretas e próximas do
evento mencionam todas uma “pregação da palavra de Deus” da parte de Francisco
que consistiu em exposição dos princípios da fé cristã e num apelo à conversão.
Tal “discurso” teria suscitado no Sultão uma reação de estima para com o
pregador, do qual apreciou a coragem e suas convicções.
As fontes decorrentes do ambiente
de Jean de Brienne falam mais de uma confrontação, de um debate contraditório
entre Francisco e os doutores da lei islâmica, o que parece estranho já que
Francisco não dominava a linguagem nem os argumentos dos teólogos.
Boaventura, por sua vez,
introduziu o relato do repto tal como havia relatado Frei Iluminato, dizendo
assim que era necessária uma intervenção sobrenatural para aceder à fé. Estamos
no campo das hipóteses. Devemos confessar que não há razão sólida para optar
por uma ou outra visão.
Não se pode deixar de observar,
no entanto, segundo a crônica de Ernoul, próxima do acontecimento e bem
informada, Francisco teria declarado ao cardeal Pelágio que queria dirigir-se
aos Sarracenos desde que isto pudesse resultar num grande bem. Que “grande bem”
poderia justificar uma iniciativa de tanto risco? A conversão do Sultão e de
sua “entourage” (roda de amizade) ao cristianismo como no tempo dos reinos
bárbaros da Alta Idade Média?
Francisco não era tão ingênuo ou
presunçoso para pensar que iria imediatamente conseguir este objetivo. Durante
essa entrevista deve ter sido abordado o tema da guerra e da paz como dá a
entender um texto de origem franciscana, infelizmente não datado, intitulado “Palavras
de Frei Iluminado”, segundo o qual Francisco teria declarado ao sultão: “É
justo que os cristãos invadam a terra em que habitais, porque blasfemaste o
nome de Cristo e afastastes de seu culto todos os que pudestes fazê-lo. Se
quereis, no entanto, reconhecer a Cristo, confessar e adorar o Criador e
Redentor, se assim os cristãos haveriam de amar-vos com se amam a eles mesmos”.
Pode-se supor que Francisco tenha
sugerido ao Sultão que concedendo aos cristãos o livre acesso a Jerusalém e não
haveria mais da parte deles empreendimentos belicosos (ou seja, conquistar a
cidade manu militari). A Cruzada perderia assim uma de suas motivações
fundamentais: a reivindicação do direito para os fiéis de Cristo de se
dirigirem pacificamente, sem taxas aos lugares santos da Palestina.
Pode-se encontrar um eco disto na
proposta que o Sultão faria aos cruzados algumas semanas mais tarde, quando
estes últimos tinham tomado Damieta, de restituir-lhes Jerusalém em troca da
evacuação rápida do Egito.
Esse compromisso que teria o
apoio de Jean de Brienne e da maior parte dos barões francos, foi rejeitado
pelo cardeal Pelágio que era de parecer de continuar a luta à exaustão contra o
Islã e até o momento da capitulação pela derrota de Mansourah, 30 de agosto de
1221.
A ideia foi retomada por Al-Kamil
e o imperador Frederico II por ocasião das negociações que haveriam de terminar,
em 1229, com o tratado de Jafa. Por meio dele, Jerusalém – com exceção da
esplanada das Mesquitas, Belém e Nazaré, bem como um corredor de acesso ao mar
foram restituídos aos cristãos, o que possibilitou a Frederico II ser coroado
rei de Jerusalém na Igreja do Santo Sepulcro sem se ter que verter uma gota de
sangue.
O imperador excomungado teria
realizado o sonho de Francisco, ou em todo caso realizado uma das solicitações
que o Poverello havia dirigido a Al-Kamil dez anos antes. Não parece absurdo ao
menos levantar a hipótese.
O que Francisco
realmente pensava da Cruzada? P.19
A seu modo de ver não havia
contradição entre a busca do martírio e o desejo de converter os infiéis, como
entre Cruzada e missão. Como bem se deu conta G. K. Chesterton, o Pobre de
Assis “abordou a questão de maneira muito pessoal e peculiar, mas era essa a
maneira com que ele lidava com quase tudo. Era de certo modo uma ideia simples,
assim como a maioria de suas ideias eram simples. Mas não era um ideia tola;
havia muita coisa a dizer a favor dela e ela podia ter dado certo. Era
simplesmente a ideia de que era melhor ser cristãos do que destruir
muçulmanos”.
Parece ter se produzido uma
evolução em Francisco depois de seu encontro com o Sultão Al-Kamil. Damieta
fora finalmente tomada pelos cruzados a 5 de novembro de 1219. Uma conquista
tão esperada foi acompanhada de massacres e atos de extrema violência. Dando
crédito ao autor do Heraclito, que foi testemunha dos fatos, Francisco “viu o
mal e o pecado que começavam a crescer entre as pessoas das tropas, o que lhe
desagradou. Partiu e foi diretamente para a Síria antes voltar para seu país”.
Profundamente contrariado com o
comportamento de seus correligionários, distante daquilo que deveria ser a seus
olhos o comportamento de “cavaleiro de Cristo”, ele preferiu tomar distância do
que evoluía numa ideia diferente daquilo que considerava a finalidade de
Cruzada.
É mesmo provável que depois dos
acontecimentos não tenha ido a Jerusalém – o Papa havia proibido aos cristãos de
propiciar recursos financeiros aos sarracenos já que cobravam taxas dos
peregrinos – mas de ter passado algum tempo com os seus confrades no que
restava dos Estados latinos.
Sem dúvida, esta permanência na
Terra Santa e as boas recordações que Francisco havia deixado aos muçulmanos
explicam o fato de que os Frades Menores foram, em 1333 – os primeiros, e por
longo tempo – os únicos religiosos latinos autorizados pelo Sultão a voltar a
Jerusalém e aos quais foi confiado, a pedido do rei de Nápoles, Roberto
d’Anjou, a guarda de alguns lugares cristãos e que conservam até nossos dias.
Bibliografia:
AUGUSTO. Frei
Zilmar, OFM “Os Franciscanos: PROFETAS
DO DIÁLOGO, DO RESPEITO E DA PAZ - 800 anos do Encontro de Francisco de
Assis e Sultão Al-Malik Al-Kamil. -
Subsídio para estudo em fraternidade em preparação ao encontro celebrativo.
CFFB. Agudos, 2019.
O que você destaca no texto?
Como ele serve para sua
espiritualidade?
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