A Mistagogia de
Francisco de Assis
Texto de Rev. Edson Cortasio Sardinha
Texto de Rev. Edson Cortasio Sardinha
Em
seus escritos, Francisco deixou um Testamento. Nele não fez outra coisa a não
ser relembrar sua experiência inicial com o Senhor Jesus e como foi aos poucos
deixando o mundo. Francisco, em seu Testamento, volta todo o tempo àqueles
momentos iniciais de sua caminhada. Ele diz: "O senhor deu a mim, Frei
Francisco, começar a fazer penitência assim: como tivesse em pecado, parecia-me
demasiadamente amargo ver leprosos. E o próprio Senhor conduziu entre eles e
fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo,
converteu-se em doçura da alma e do corpo; e, em seguida, detive-me mais um
pouco e saí do mundo". (Testamentos, p. 83).
Francisco
em seu testemunho e nas primeiras biografias fala de sua experiência com Jesus
e sua conversão e como também os homens e mulheres podem fazer este caminho no
mistério da fé. Ele tem um propósito mistagógico. Deseja orientar seus seguidores
a entrar no mistério do Encontro com o Evangelho. Ele demonstra o caminho. Seu
desejo é apresentar o mistério e sua práxis. Para isso usa de palavras simples,
relatando sua caminhada rumo ao Senhor do Evangelho.
1.
A Experiência com o Mistério
A
memória que Francisco resgatada constantemente em seu caminho remete a
experiência com o mistério. A ideia de ‘memória’ aqui é reviver; saber que
existe algo que fundamenta toda a caminhada. Algo que não está simplesmente
esquecido no passado e sim, presente e atuante. Francisco rememora na tentativa
de possibilitar o entendimento. Podemos dizer que rememorando, o santo se faz
mistagogo. Sua mistagogia é trabalhada e se transforma em instrumento
pedagógico para se fazer a experiência de Deus. Esta pedagogia
"subliminar" irá influenciar toda a cristandade e ainda é provocadora
em muitos movimentos cristãos, inclusive protestantes.
Celano
inicia sua Segunda Vida (IICel) informando que o propósito em escrever a vida e
Francisco é "para consolação dos presentes e memória
dos futuros" (IICel 1.1). Afirma que teve "conhecimento direto, por
convivência assídua e mútua familiaridade com ele" (II Cel 1.1). Ou seja,
foi influenciado diretamente da sua mística. Esta transmissão da mística fez de
Francisco o grande mistagogo. Aquele que ensinou com a vida a mística de ser de
Deus e viver o Evangelho no cotidiano e na pessoa do próximo.
2. O Homem Novo
Francisco, para Celano, é o símbolo do novo homem que
vive o Evangelho e precisa ser seguido e imitado. É o início de uma nova
geração na vida da igreja. "Fruto da ação de deus para os últimos
dias". Cria que, em Francisco, estava começando uma nova história de
restauração e avivamento da igreja.
O "Pobre de Assis" se transformou num arquétipo
de homem evangélico que alcança todas as gerações. Um arquétipo que está livre
das instituições religiosas e do engessamento da fé oficial. É um místico que
extrapola suas barreiras religiosas e se coloca como exemplo de homem que
seguiu Jesus com sacrifício e alegria. Sobretudo alegria.
Na verdade, o arquétipo São
Francisco não age apenas entre seus filhos; exerce uma fascinante atração
difusa, como santo e como Francisco de Assis. Aqui não é preciso deter-se em
razões e mecanismos institucionais e culturais (antropologicamente culturais),
através dos quais o arquétipo se transforma em veículos de ideologia ou de
ideologias e, portanto, em agente de responsabilização individual e coletiva.
Nós que vivemos no relativo e contingente não podemos mandar para fora de nós -
para a presumida autoridade do arquétipo de santidade, como quer que ele se
chama - a legitimação e a coerência das decisões e opções que competem somente
a nós: nenhuma autoridade pode dispensar-nos de nossas responsabilidade de
indivíduo entre indivíduos. Como se chega a assumir a plena responsabilidade
pessoal, é outro discurso: talvez através de uma caminha que é moral e cultural
ao mesmo tempo e está cheia de dificuldade e não privada de sofrimentos (MERLO,
2005, p. 17).
Francisco não desejou transformar ninguém. Seu primeiro
caminho como místico e mistagogo foi viver a gratuidade do mistério. Viver como
um mendigo, não ajudar o mendigo. Não teve pena dos fracos, mas se fez fracos
para poder experimentar a dimensão da graça mesmo na fraqueza da vida. Seu
caminho de Homem novo não foi um percurso religioso, mas um experiência de
total dependência da graça de Deus se fazendo graça para o próximo.
Mas não era suficiente dar esmola
aos necessidades, nem ser carinhoso com os mendigos, nem se quer projetar a
imagem de Jesus naqueles esfarrapados humanos. A prova mais decisiva do amor,
já se disse, é dar a vida pelo amigo. Mas é possível que ainda se possa ir mais
alto: Passar pela própria experiência existencial do amigo. Foi o que Jesus
Cristo fez com a encarnação. E era o que queria fazer Francisco: Mergulhar nos
abismos da mendicidade, experimentar durante um dia o papel de mendigo e o
mistério da gratuidade (LARRANHAGA, 2007, p. 48).
Ele não correu atrás de discípulos. Apenas viveu e
experimentou o Evangelho. Sua regra era o Evangelho de Cristo. Antes de sair
pregando a Palavra de Deus, viveu a mística da Palavra. Seus amigos se
aproximaram e descobriram a beleza de ver a criação como sinal da mão de Deus.
Francisco de Assis e seus filhos
espirituais foram realmente admiráveis. Eles falavam a todos do amor de Deus e
o apontavam em tudo, nas maravilhas do universo, no Sol, nas Estrelas e em
todos os astros do firmamento infinito. Viam Deus na terra dos homens, nos
vales e nos altos picos dos homens, nos rios e nos mares (LEITE, 2004, p. 35).
Francisco é mistagogo porque sua mistagogia prevalece em
seu exemplo de homem novo. Ele conseguiu viver os valores e Jesus numa
radicalidade que impressiona. A história tem demonstrado como o caminho que
Francisco percorreu se transformou numa tristeza para as pessoas que não
conseguem largar suas prisões materiais e uma alegria para os que necessitam de
estímulo para viver uma vida nova baseada no caminho novo. LEITE (2004)
afirma:
Quem escreve ou medita sobre São
Francisco de Assis não pode deixar de sentir o próprio coração levitado em
êxtase, comungar, espiritualmente, a alma encantadora do poverelo, poema de céu
numa ação de graça florida e dilatada, e juntamente experimentar a mesma
alegria casta e simples do "jogral de Deus", sonhador e poeta,
guerreiro ardoroso, aprisionado e desiludido, que se sentiu enfim senhor de si
mesmo no dia em que encontrou o leproso e o beijou (LEITE, 2004, p. 7).
Francisco nunca desejou ser o que a igreja
o transformou. Nos escritos de Celano é percebido sua intenção de viver Evangelho como Regra de vida. Se desejasse
ser um monge, entraria em um mosteiro. Se desejasse ser padre teria o apoio do
bispo de Assis. Poderia percorrer a vida dos beneditinos ou a Regra dos
agostinianos. Mas sua caminha foi diferente. Desejou viver livre na vida como o
"jogral de Deus" . Não via no clero ou na instituição exemplos de
vida livre. Preferiu fazer o seu próprio caminho. Como disse MACEDO, (1996, p.
59, 60): "O poverelo (pobrezinho) de Assis pretendia
regenerar a igreja, mas temia a criação de uma ordem religiosa. Queria uma
religião pura, sem instituições ou hierarquias, para não cair nos mesmos erros
do clero".
Ele não desejou ser uma santo. Na
Primeira Vida, Celano demonstra que Francisco vivia uma vida "mundana e
secular". Foi educado para viver para o "mundo". Sua mudança não
foi uma ação de sua própria vontade, foi uma ato da graça de Deus. A teologia
da graça é o único caminho para entender a mistagogia franciscana. Francisco, o
homem novo, encontrou a mão da graça de
Deus, esta é a única explicação teológica:
A graça é o dom de Deus que
contem todos os outros, o de seu Filho, mas não é simplesmente objeto desse
dom, É o dom radiante da generosidade do doador e que envolve com essa
generosidade a criatura que o recebe. É por graça que Deus dá, e aquele que
recebe seu dom encontra graça e complacência diante dele. (LEON-DUFOUR, 1999,
c. 386).
3. O modelo da mistagogia Franciscana
O segredo de Francisco foi seu
encontro com o Evangelho de Cristo e sua experiência mística com o próprio
Cristo. Mesmo tempo o exemplo das legendas e dos testemunhos de muitos santos e
santas, nunca teve nenhum homem como modelo. Como diz ERICKSO, (1991, P. 71): "Francisco
de Assis enfatizava a imitação de Cristo através da pobreza absoluta, humildade
e simplicidade".
Como mistagogo que seguia o modelo
de Cristo, conseguiu imprimir um dinamismo evangélico e espiritual em seus
seguidores. Isso não foi fruto de uma elaboração intelectual e intencional,
como afirma MERINO (2006, p.17):
Francisco de Assis foi um homem profundamente evangélico e não um
intelectual, nem propôs o saber como missão essencial de evangelização para
seus membros. mas soube imprimir tal dinamismo espiritual e evangélico em seus
seguidores que foi capaz de criar um estilo peculiar de viver, de habitar no
mundo e de interpretar a própria vida e o que acontece nela e , a partir daí, a
elaboração de um sistema filosófico-teológico característico da família
franciscana.
Nenhum outro homem teve uma vida tão
livre e tão desejada no decurso da história da Igreja. Sua mistagogia
pedagógica é admirada por protestantes, católicos e líderes de diversas
religiões. Muitos homens ficaram famosos por conquistarem terras, reinos e
poder. O que Francisco conquistou enquanto estava vivo? O que o distingue dos
demais heróis? O homem que, "mais do que qualquer outro, viveu como Jesus
e amou todas as criaturas pequenas e grandes, vivas e inanimadas. E, sobretudo,
o homem que amou ternamente a Deus, Pai e Criador do irmão sol, da irmã lua,
das estrelas, da mãe terra e de todas as outras coisas". (ROMA, 1996, p.
30).
Francisco distingui-se pela
perenidade de sua vida pobre, humilde, fraterna, evangélica e transformadora.
Francisco, "o homem feito oração", se impõe 800 anos depois, porque
viveu em profundidade a mensagem de Jesus Cristo. Francisco escolhe como regra de
vida o Evangelho: "A regra e a vida dos frades menores é esta: observar o
santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem
propriedade e castidade". Nada mais! (ABATI, 2003, p. 93, 94).
4. A Teologia mistagógica de
Francisco
A Teologia Francisca é um novo
caminho das ciências teológicas. Ela está baseada mais na vida de Francisco do
que no seu pensamento. Não segue o caminho do conhecimento e da razão, mas o
caminho da fé que permite a razão trabalhar conteúdos novos e provocativos. Sua
mistagogia teológica tem como único elemento: a fé. O livro Teologia
Franciscana, organizada por MERINO (2005, p.14) explica este novo caminho
teológico:
O suporte vital do pensamento
franciscano não são tanto ideias da filosofia grega, mas as verdades reveladas
pelo cristianismo. É uma filosofia na fé. Pois bem, a fé não se opõe à razão
humana, mas a transcende e se oferece como um suplemento de luz. A fé não é
algo irracional ou contra-racional, mas metarracional. E seu ensinamento não se
refere a um saber das coisas, mas a um orientar a vida humana segundo um
projeto revelado, quer dizer, a um saber sapiencial (MERINO, 2005, p. 14).
O Franciscanismo nunca foi uma
teologia para fazer novos "Franciscos", mas uma novidade para
transformar homens e mulheres a semelhança de Cristo. Assim como não seguiu a
nenhum homem ou fundador de movimentos institucionais ou heréticos, Francisco
também nunca desejou ser o modelo, mas apresentou Jesus como modelo. Foi o
iniciador de uma nova teologia de santidade onde o despojamento total serviu
para modelar em si mesmo, (inclusive no simbolismo dos estigmas) um novo
Cristo. Este desejo de tornar
"Cristiformes" as pessoas foi herdada por seus seguidores e
intelectuais. Transformar pessoas em "novos Cristos" foi a principal
proposta pedagógica do movimento franciscano:
O franciscanismo contem uma
imposição pedagógica na sua própria espiritualidade. Segundo o pensamento de
São Boaventura, o superior deve esforçar-se por tornar "cristiformes"
as pessoas a ele confiadas: isto é, imprimir nelas a forma da vida e da
doutrina de Cristo, de maneira que não só se dirijam a ele com a alma, mas o
imitem nos costumes. O Franciscanismo não consiste numa desencarnada tensão ao
sobrenatural, mas sensibiliza o homem também para os valores terrenos. O escopo
de forjar homens "cristiformes" não é distinto do de torná-los capazes de comover-se e
exaltar-se pela etérea beleza das flores, pelo límpido gorjeio dos pássaros,
pela multiforme vida do universo. (ZAVALLONI, 1999, p. 29).
Discute-se hoje a atualização da proposta teológica de
Francisco. Para PIERAZZI (1994, p.7), "O que ocorreu com
Clara e Francisco é uma aventura cujos valores ressurgem hoje mais atuais do
que nunca". Viver a radicalidade do
Evangelho e o desprezo pelo mundo de egoísmo e desumanidade é uma urgência.
Desde o inicio o carisma franciscano
não foi direcionado aos religiosos. Não desejava ser uma Ordem para não fechar
as portas aos homens e mulheres que ansiavam viver o Evangelho e respirá-lo
livremente sem o peso da hierarquia religiosa. Tanto é verdade que não era exigido
nenhum tempo de noviciado para ser um irmão Menor como os conventos e mosteiros.
Era necessário apenas confessar estar arrependido dos pecados e desejoso de
viver o Evangelho segundo a pobreza cristã. Quem desejava esta aventura, simplesmente recebia o hábito e caminhava de
dois em dois pregando o arrependimento e a conversão. Este caminho estava aberto inclusive para
pessoas que necessitavam continuar vivendo os deveres comuns da sociedade.
O carisma proposto e vivido pelo
pobrezinho de Assis não se esgotou na vida religiosa. Havia aqueles que, além
dos compromissos familiares, se propunham também a uma prática evangélica
conforme a Ordem e adequada às condições civis em que viviam. Assim nascia a
Terceira Ordem Secular, a primeira instituição leiga a serviço da Igreja.
(GAMISSAS, 2002, p. 18).
Francisco é um místico, mas sabe
valorizar concretamente a realidade terrestre e humana. Nada impede a quem
trabalha honestamente na vida, em qualquer forma, de trabalho, de observar o
santo Evangelho (CIANCHETA, 1970, p. 48).
A mistagogia que nasce com Francisco
de Assis é proposta por Tomás de Celano como um novo tempo. O Francisco sem os
desenhos institucionais e a moldura da igreja fixado por Celano é um homem
livre que deseja construir uma fraternidade de pessoas "apaixonadas pelo
Evangelho" com alcance mundial. Um
exemplo disso são os novos trabalhos que releitura de Francisco e sua aplicação
para os diversos setores da sociedade. Como fez SANTARÉN, no seu livro A
Perfeita Alegria, aplicado para Líderes e Gestores. SANTARÉN diz que Francisco "Compreendeu
que o sentido da vida humana não está em criar e acumular riquezas, mas
construir fraternidade; assenta-se não no ter, mas no ser solidário e
compassivo para com todos os seres criados (SANTARÉN, 2010, p. 58).
Surpreso pela novidade de Francisco
SANTARÉN dialoga com o pobrezinho: "Que ser humano és tu, Francisco? como
desenvolveste essa liderança que te fez "o homem do milênio"? e que
sou eu diante de ti Francisco? que líder sou eu perto de ti? (SANTARÉN, 2010,
p. 13).
Francisco é hoje uma das maiores
riquezas da igreja, porque "se fez pobre para seguir como pobre o Cristo
pobre"; como disse BECKHAUSER
(2000, p. 184): "São Francisco de
Assis, conhecido e reconhecido pela Igreja e por todo o mundo como o Pobrezinho
de Assis, continua para o mundo um testemunho de pobreza livremente abraçada,
símbolo da maior riqueza do Reino dos Céus.
Celano inicia uma caminha que
plantou nas gerações futuras uma mistagogia de atração para as pessoas que
desejam ser melhores e livres das incertezas do mundo tão injusto e egoísta. A
aventura do homem de Assis poderia ter morrido com ele mesmo. Seria mais um
santo lembrado pela igreja. Mas devido suas muitas biografias (hagiografias) se
tornou um modelo de caminho em direção ao Modelo que é o Evangelho de Jesus.
Celano estava apenas obedecendo uma
ordem do Papa, mas se transformou num mensageiro da novidade. Suas biografias e
as outras que vieram, divulgaram o que o Evangelho pode realmente realizar na
vida das pessoas. Esta história demonstra que é possível viver com qualidade,
mesmo no despojamento. É desta forma que lemos o texto poético de BOFF (, 2009,
p.11).
Na sua biografia se tornaram visíveis e
possíveis sonhos carregados ao longo de toda a vida e acalentados no fundo de
nosso coração: uma rerelação amorosa e terna com Deus, Pai e Mãe de infinita
bondade, um amor simples a todas as coisas, vivenciadas como irmãos e irmãs;
uma discreta reconciliação entre os impulsos do coração e as exigências do
pensamento; uma calorosa recepção dos distantes e distintos, feitos próximos, e
dos próximos feitos irmãos; uma aceitação jovial daquilo que não podemos mudar;
uma inocente liberdade em face das ordens e regras estabelecidas; uma alegre
acolhida da morte como amiga da vida.
O caminho de Francisco
não foi cercado de eventos milagrosos e sobrenaturais. O grande milagre foi sua
mudança de vida e a mudança que provocou na vida de milhares de homens e
mulheres, jovens e velhos, leigos e clérigos. Sua transformação destruiu a estabilidade
de seus amidos. Seus roteiros de vida foram mudados por seu testemunho. Como
informa PADOAN, 2008, p. 29):
Justamente ele, que até pouco
tempo atrás era amado, invejado, seguido, cortejado pelas mais belas moças, não
só por causa da sua gentileza e de seus talentos, mas também pela riqueza de
seu pai. Parecia mesmo inacreditável que estivesse agora vestido com farrapos e
falasse de Deus e do amor ao próximo. Propôs-se a trabalhar como pedreiro e restaurador
ao lado de seus novos amigos, convencidos pela pregação de Francisco e unidos
pelo seu mesmo entusiasmo.
Sua mística foi construída na
indiferença diante das opiniões dos outros. Respeitou a ordem de ir ao Papa.
Respeitou a ordem de escrever uma Regra. Submeteu sua ordem a Igreja e acatou
seu direcionamento. Não pensando em sua segurança ou promoção eclesiástica, mas
pensando na segurança de seus filhos. É descrito como mãe por Celano. Mãe que
cuida de seus filhos e busca sua proteção. Esta é a parábola que apresenta ao
papa na Segunda Vida. Uma mãe que trás seus filhos ao rei. Contudo, apesar
desta submissão, era completamente livre da opinião dos outros. Críticas e
elogios não afetavam mais sua vida. Tinha um propósito e seguiu unicamente sua
meta. Não se distraia pelas opiniões das multidões. ALVES (2008, p.106) diz que :
Louvores das multidões não o
impressionava, do mesmo jeito que os insultos a ele outrora lançados nunca
tinham perturbado. Bendito é o Servo, certa vez ele explicou aos irmãos, que,
quando louvado e exaltado pelas pessoas, não se considera melhor que quando o
julgam indigente e imprestável. O que quer que um homem seja diante de Deus,
ele é isso e nada mais (ALVES, 2008, p. 106).
São Francisco de Assis sempre foi
água em movimento. Nunca ficou inerte, vacilante, parado, encostado. Por isso,
venceu todos os obstáculos e sempre conservou a água pura, límpida,
transparente, potável, recompensa de seu esforço e vontade decidia e firme. Ele
sempre alcançou o que queria, porque enfrentava os obstáculos com arrojo e
tenacidade. É modelo de conscientização e responsabilidade, sempre ponto para
mexer-se , para agir, movimentar-se, para impedir que a água apodrecesse,
cheirasse mal, e criasse bichos nocivos (enquanto se fica no primeiro degrau da
escada, não se chega no segundo da escada da santidade) (ROMBO, 2010, p. 14).
Os últimos anos da vida de Francisco
foram de grande insatisfação com as divisões internas da Ordem. O crescimento
dos clérigos na nova Ordem trouxe uma redirecionamento nunca desejado por
Francisco. Teve um tempo de grande lutas ao ponto de ir com Frei Elias ao monte
buscar direção de Deus para sua caminhada. No monte conseguiu uma única
resposta: os estigmas. Desce do monte feliz e realizado. Entendeu que sua vida
não foi para gerenciar uma Ordem eclesiástica, mas para apontar Cristo com seu
próprio testemunho. Estava agora preparado para a morte. A morte nada mais
seria do que a inauguração de uma mistagogia livre do poder eclesiástico.
É neste sentido que BOBIN (1999, p.
92) apresenta a morte de Francisco com a ferramenta da poesia abstrata:
Louvado seja o Senhor pela nossa irmã, a
morte. Eis ai; está dito, está feito: ele nada mais tem entre a vida e sua
vida, ele nada mais tem entre ele e ele, ele não tem mais nem passado nem
presente nem futuro, mais nada além do Deus Baixíssimo, frequentemente
Altíssimo, muitas vezes espalhados em todo lugar como água ( BOBIN, 1999, p.
92).
As hagiografias, ou Bio-Hagiografias
como as denomina MERLLO (2005) tentou apresentar um homem que viveu como
simples humano a radicalidade do Evangelho. Seu milagre se estendeu nos
seguidores. O carisma passou a ser desejado pelos crentes. Sua história se
transformou em mistagogia. Sua pedagogia de viver a vida é um "grito"
desejado por muitos homens e mulheres. Antes de morrer viu sua vida com um
presente de Deus. "Fez uma recapitulação mental dos vinte fecundos
anos, e sentiu uma imensa satisfação e gratidão pela missão cumprida. Abriu os
olhos, voltou-os para os irmãos e disse, com voz vigorosa: "Com a graça de
Deus, cumpri meu dever; que Cristo vos ajude a cumprir o vosso"
(LARRANHAGA, 2007, p. 391).
5. Francisco hoje: Viver a altura
do Evangelho
Tomás de Celano, como primeiro biógrafo
de Francisco, inicia seus livros e termina afirmando que a novidade de Francisco,
sua mistagogia, é a redescoberta do Evangelho do Senhor Jesus. O esforço de Francisco
foi, após a conversão, viver à altura do Evangelho. Sua vida foi moldada pela
vida de Cristo. Seu enfoque foi reproduzir, na Idade Média, o Evangelho de
Cristo vivido e proclamado no primeiro século. Desejou ser mais um cristão no
grupo dos discípulos que caminhou no Evangelho.
Hoje o grande desafio é viver à
altura do Evangelho. Para este percurso Francisco de Assis se coloca como
mistagogo, aquele que ensina o mistério da vida cristã segundo o Evangelho.
O Assistente Espiritual Nacional da
Ordem Franciscana Secular do Brasil (OFS), Frei Almir Ribeiro Guimarães,
escrevendo para a Revista especializada em Franciscanismo Secular, discorre
sobre a relação dos franciscanos com o Evangelho com o tema "Importa Viver
à Altura do Evangelho (GUIMARÃES, 2011, p.14,15). Ele inicia seu texto onde Francisco
inicia sua nova vida: No Evangelho. Ele diz:
Esta é uma certeza. O Evangelho continua
sendo uma Boa Notícia, bela como a graça e ardente como o amor, que transforma
quem recebe com o coração de criança: "Eu te louvo, Pai, Senhor do Céu e
da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as
revelastes aos pequeninos". O Evangelho continua sendo um caminho de
liberdade para quem o acolhe em seu imediatismo, seu frescor, sua radicalidade
(Ibid., p.14).
Quando Francisco descobriu o Evangelho,
ele descobriu uma pessoa. Foi sua relação com o Jesus Cristo dos Evangelhos que
transformou sua vida. Hoje este encontro com o Jesus de Francisco nos
impulsiona a buscarmos a construção de uma fraternidade. Imitar o Senhor Jesus
foi a direção apresentada pro Francisco. Este caminho de "imitação"
precisa ser reanimado hoje nos movimentos que desejam viver a radicalidade do
Evangelho. Será um exercício de transformação a partir da compreensão cósmica e
holística da Pessoa divina que é o Evangelho. Como diz GUIMARÃES:
O Evangelho não é um livro, um texto
escrito, morto. É alguém, uma Pessoa. É Cristo Senhor, vivo e ressuscitado.
Paulo não conheceu o Cristo histórico e se apaixonou pelo ressuscitado que lhe
apareceu na estrada de Damasco. Uma força, um poder que vem da vitória de
Cristo sobre a morte, o caos, a desarmonia. Força de vida que procede do amor
desmesurado do Pai que manda o Filho, Filho que anuncia carinho e misericórdia,
que morre e ressuscita para dar aos nossos dias um sentido diferente: ser para,
buscar a construção de uma fraternidade, de um reino que começa nas coisas
pequenas, agir como um fermento no coração da realidade. O Evangelho não é algo
adocicado e sem força. Cristo mesmo afirmou que viera lançar fogo à terra (Ibid.,
p.14).
A mensagem de Francisco para hoje é
que a Igreja viva a altura do Evangelho numa fé vigilante. É uma
espiritualidade nos que conduz ao novo, acordando homens e mulheres para a
vida que está muito além da cobiça por
bens materiais. Ele tem o poder de ampliar os horizontes e demonstrar que a
realização do homem e da mulher está na comunhão com Deus que leva ao próximo.
No coração da espiritualidade de Francisco
está uma fé vigilante. Os cristãos franciscanos deixam-se conduzir de novo, no
meio da noite pela esperança que ganhou rosto em Jesus. Eles despertam de uma
sonolência em que vivem os homens, na abundância, opulência e busca de suas
coisas. O projeto evangélico de Francisco se funda na fé. A fé que acredita ser Deus o amor, que seu
projeto sobre o homem arrebenta a estreiteza de nossos horizontes. O ser humano
precisa ser de Deus (Ibid., p.14).
O esforço de Celano foi apresentar
um Francisco que viveu á altura do Evangelho. Por seu exemplo passou a ser uma
mistagogo na construção de novos homens. Ele organizou sua biografia no
encontro de Francisco com o Evangelho e na resposta de vida que deu a este
encontro. Francisco passa ser o modelo de Celano para quem deseja viver a
altura do Evangelho. Viver à altura do
Evangelho significa fazer dele fonte da vida.
A ele nos referimos constantemente:
vida, casamento, trabalho, contradições, presente e futuro. Esse Cristo, Boa Nova, vivo e ressuscitado,
nos toma na totalidade de nosso ser e marca encontro conosco nas esquinas de
nossa peregrinação no rosto dos mais desvalidos, na sua Palavra que nos
revigora, nas inspirações a sairmos na mediocridade e atingirmos os pícaros de
uma vida de santidade (Ibid., p.14).
Um dos documentos antigo das
Fraternidades Seculares da França assim descreve esse viver a altura do
Evangelho:
"Para viver a altura do Evangelho não
nos contentamos de transportar para nossa vida uma atitude ou um gesto de Jesus
ou de repetir uma ou outra de suas palavras. Mas fundamentalmente, abrimo-nos à
ação de Espírito nos esforçaremos de inventar no decorrer de nossa existência a
maneira como Cristo quer viver em nós, no meio dos homens". Nós, os seus
discípulos somos sua presença vigorosa, forte, no meio da contradição do mundo
(PAZ e BEM, 2011. p. 15).
A contribuição de Francisco para
hoje é a transformação que a sociedade pode sofrer se redescobrir o Evangelho
que Francisco descobriu. Esta experiência tem o poder de mudar as experiências
do mundo de um mundo esgotado pela falta de valores baseados no amor.
A
força do Evangelho precisará tornar-se presente em várias situações do mundo de
hoje. Há um diferentismo entre as pessoas. O Evangelho nos leva a fazer pontes
e a evitar todo distanciamento. Vale sempre o ditado: cada um por si e Deus por
todos. Nossos tempos são marcados por uma busca de bem estar, de consumo.
Parece que os homens querem armar a tenda da existência para sempre nas coisas
que passam. Há ainda essa perda de lembrança do que passou e um desinteresse
pelo que vem. Vivemos o momento presente, seco, esgotado, sem esperança de
plenitude alguma. O mundo rola e rola (Ibid., p.14).
Cristo é o centro da vida franciscana.
As constituições Gerais da OFS lembram que há um compromisso dos franciscanos
de observar o Evangelho. Há um apelo para que os novos franciscanos lembrem do propósito
feito, da promessa de construir, à sua volta, um mundo nova partir do Evangelho.
As Constituições Gerais, citada por Guimarães, orientam que os que desejam um
caminho novo a luz do Evangelho vivido por Francisco,
"Procurem aprofundar à luz da fé,
os valores e as opções da vida evangélica, segundo a Regra da Ordem Franciscana
Secular: num itinerário continuamente renovado de conversão e de formação;
abertos às exigências que vêm da sociedade e das realidades eclesiais, passando
do Evangelho à vida e da vida ao
Evangelho; na dimensão pessoal e comunitária deste itinerário" (art 8).
Fica claro que nossa profissão nos leva a procurar viver à altura do Evangelho.
Tal será mais fácil se ingressarmos vigilantemente num processo de conversão
(disciplina de vida, cura do egoísmo, prontidão para o serviço, abraço com a
cruz). Há este vai e vem entre Evangelho e vida e vida e Evangelho. (GUIMARÃES,
2011, p. 15).
Na vivência do Evangelho não basta
um verniz de piedade e de religiosidade. O Evangelho questiona o comportamento
do religioso diante do trabalho, do dinheiro, do lucro, das ofensas, da
pastoral, da evangelização, da partilha, da sexualidade, da prática nem sempre
límpida da fé.
Com Francisco de Assis é descoberto
uma dinâmica nova na evangelização: Os que evangelizam os que são evangelizados
ou estão num processo de transformação.
Paulo VI em 1975 disse:
"Evangelizar, para a Igreja, é
levar a Boa Nova a todas as parcelas da humanidade, em qualquer meio e
latitude. Não haverá humanidade nova, se não houver, em primeiro lugar homens
novos, pela novidade do batismo e da vida segundo o Evangelho. A finalidade da
evangelização é precisamente esta mudança interior; esse fosse necessário
traduzir isso em breves termos, o mais exato seria dizer que a Igreja
evangeliza quando, unicamente firmada na força divina da mensagem que proclama,
ela procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e coletiva dos
homens, a atividade em que se aplicam e a vida e ao meio concreto que lhes são
próprios" (PAULO VI, Evangelii Nuntidandi, 1975. item 18).
A vida de Francisco desloca a imagem
tradicional de Deus para um novo enfoque: do Deus criador providente, ocioso,
intocado na sua imobilidade para o Deus pessoal envolvido na história; do Deus
Pai poderoso, legitimador da ordem vigente para o Deus Pai misericordioso e
libertador do povo; do Deus Altíssimo, distante da vida para o Deus próximo da
vida humana concreta; do Deus legislador ao Deus comprometido com a liberdade e
libertação humana; do Deus crido nas formulações dogmáticas para o Deus
acolhido no testemunho da entrega do Filho; do Deus insensível ao sofrimento
injusto dos pobres para o Deus envolvido com o sofrimento deles.