Biografia de Francisco de Assis
Tomás
de Celano
1Celano
- Segundo Livro - Capítulos 5 - 10
Breve Cronologia de Francisco de Assis
1181/82 - Nascimento de Giovanni di Pietro (Pai) di Bernardone (avô).
1202 - Guerra entre Perusa e Assis.
1204 - Longa doença.
1205 - parte para a guerra na Apúlia, no sul.Volta após visão e
mensagem de Espoleto.
1205 - mensagem do crucifixo de São Damião.
1206 – questão perante o bispo Dom Guido II. Em Gúbio, perto de Assis,
cuida dos leprosos.
1208 - 24 de fevereiro: ouve o evangelho da missa de São Matias, na Porciúncula, sobre a missão Apostólica.
1208 - 24 de fevereiro: ouve o evangelho da missa de São Matias, na Porciúncula, sobre a missão Apostólica.
1209 - Francisco escreve a “forma de vida” a regra que o Senhor o havia
inspirado. Na primavera, viaja a Roma com seus onze companheiros, e o papa
Inocêncio III, aprova de forma verbal seu modo de vida. Regressam a Assis e
permanecem em Rio Torto. Mudam-se depois para a Porciúncula
1212 –na noite do domingo de Ramos, a nobre jovem Clara di Favarone
foge de casa e é recebida na Porciúncula.
1220 - O Cardeal Hugolino é nomeado o protetor da Ordem.
1220 –Francisco entrega o governo da Ordem a Frei Pedro Cattani, como seu vigário.
1220 –Francisco entrega o governo da Ordem a Frei Pedro Cattani, como seu vigário.
1223 – 29 de novembro : Honório III aprova, com bula papal, a Regra
definitiva, ainda hoje em vigor.
24/25 de dezembro: na noite de Natal, Francisco celebra a festa em
Greccio, junto a um presépio.
1224 – 15 de agosto a 29 de setembro: Francisco, com Frei Leão e Frei
Rufino, passa no Alverne, preparando-se com uma quaresma de oração e jejum. Em
setembro, tem a visão do Serafim alado e recebe os estigmas.
1225 - Recebe a promessa de vida eterna. Depois de uma noite dolorosa,
atormentado pela dor e por ratos, compõe o Cântico do Irmão Sol.
1226 – 3 de outubro, à tarde : Francisco cantando “mortem suscepit”
(morreu cantando).
CAPÍTULO 5. Recebido em Rieti por
Hugolino, bispo de Ostia. Prenuncia-lhe o santo que seria bispo de todo o mundo.
99. Não conseguiu alívio, apesar
de serem muitos os que lhe levaram medicamentos para ajudá-lo, e foi para
Rieti, onde constava haver alguém muito
capaz de curar aquela doença. Ao chegar, foi muito bem recebido, com toda a
honra, pela Cúria Romana, que estava na cidade nesse tempo, mas especialmente
por Hugolino, bispo de Ostia, famoso por sua honradez e santidade.
Ele já tinha sido escolhido por
São Francisco como pai e senhor de toda a Ordem dos seus irmãos, com o
consentimento e por vontade do Papa Honório, porque gostava muito da santa
pobreza e tinha uma reverência especial pela santa simplicidade. Conformava-se
em tudo com os costumes dos frades e, desejando ser santo, era simples com os
simples, humilde com os humildes e pobre com os pobres. Era um irmão entre os
irmãos, o menor entre os menores, e
procurava
ser como um dos demais na maneira de viver e de agir.
Estava muito empenhado na difusão
da Ordem e, com a sua reputação de santo, conseguiu estendê-la aos lugares mais
longínquos.
Dera-lhe o Senhor uma língua
erudita, com que confundia os adversários da verdade, refutava os inimigos da
cruz de Cristo, reconduzia os transviados ao caminho, pacificava os que estavam
em desavença e reforçava os laços da caridade entre os que se amavam. Era na
Igreja de Deus uma luz que arde e ilumina e uma seta escolhida, preparada para
o tempo oportuno.
Quantas
vezes, deixando vestes preciosas, vestia-se como um pobre e andava descalço
como um dos frades, pedindo que fizessem a paz! Fazia isso entre uma pessoa e
outra sempre que era possível, ou entre Deus e os homens, e sempre com
solicitude. Por isso,
pouco
depois Deus o escolheu para ser pastor em toda a sua santa Igreja, colocando-o
acima de todos os povos.
100. Para que se saiba que isso
foi feito por inspiração divina e pela vontade de Jesus Cristo, muito tempo
antes o bem- aventurado pai São Francisco tinha predito o fato com palavras e
dado um sinal visível. No tempo em que a Ordem dos frades, pela graça de Deus,
já tinha começado a se difundir bastante, e como um cedro no paraíso de Deus
elevara-se até o céu pelos santos merecimentos, estendendo os ramos por toda a
amplidão da terra como a vinha eleita, São Francisco dirigiu-se ao Papa
Honório, que então governava a Igreja, e lhe suplicou que nomeasse o cardeal
Hugolino, bispo de Ostia, como pai e senhor dele e de seus frades. O Papa anuiu
aos desejos do santo e delegou com bondade ao cardeal o seu poder sobre a Ordem
dos frades. Ele o recebeu com reverência e devoção, como um servo fiel e
prudente constituído sobre a família do Senhor, e procurou por todos os modos
administrar no tempo oportuno o alimento da vida eterna aos que lhe tinham sido
confiados. Por isso o santo pai se submetia a ele de todos os modos e o
venerava com admirável e respeitoso afeto.
Era conduzido pelo espírito de
Deus, de que estava repleto, e por isso intuía muito antes o que depois seria
revelado aos olhos de todos. Sempre que lhe escrevia, por algum motivo urgente
da Ordem ou pelo amor que em Cristo lhe dedicava, não se limitava a chamá-lo de
bispo de Ostia ou de Veletri, como os outros faziam nas saudações de praxe, mas
começava com estas palavras: "Ao reverendíssimo pai, o senhor Hugolino,
bispo de todo o mundo".
Saudava-o muitas vezes com
bênçãos originais e, embora fosse filho devotamente submisso, por inspiração do
Espírito Santo às vezes o consolava com uma conversa paternal, como "para
cumulá-lo das bênçãos dos pais na espera do Desejado das colinas eternas".
101. O cardeal também tinha uma
amizade enorme pelo santo, e por isso aprovava tudo que o santo dizia ou fazia;
e só de vê-lo ficava muitas vezes todo comovido. Ele próprio afirmava que nunca
tivera
perturbação
ou tentação tão grandes que não passassem só de ver ou conversar com o santo, o
que lhe devolvia a serenidade, afugentava o aborrecimento e o fazia aspirar à
alegria do alto.
Pusera-se ao serviço de São
Francisco como um servo ao seu senhor, e sempre que o via fazia-lhe uma
reverência como a um apóstolo de Cristo, inclinando-se exterior e
interiormente, e muitas vezes lhe beijava as mãos com seus lábios consagrados.
Interessou-se com solicitude e
devoção para que o santo pai pudesse recuperar a antiga saúde dos olhos, vendo
nele um homem santo e justo, muito útil e necessário à Igreja de Deus.
Compartilhava os sofrimentos de
toda a família dos frades, compadecendo-se dos filhos no pai. Por isso,
exortava o santo pai a cuidar de sua saúde e a não recusar os remédios
necessários na doença, pois esse descuido podia ser-lhe imputado como falta e
não como merecimento. Aceitando com humildade tudo que lhe foi dito por um
senhor tão reverendo e um pai tão querido, daí por diante São Francisco teve o
maior cuidado e prudência com o que era necessário para sua cura.
Só que a doença tinha se agravado
tanto que para qualquer melhora exigia um especialista muito hábil e remédios
muito dolorosos. Por essa razão, embora lhe tenham cauterizado a cabeça em
diversos lugares, feito sangrias, colocado emplastros e derramado colírios,
nada adiantou. Quase sempre foi
ficando
pior.
CAPÍTULO 6.
Comportamento dos irmãos que cuidam de São Francisco. Como deseja viver.
102. O santo suportou isso com
toda paciência e humildade, durante quase dois anos, dando em tudo graças a
Deus. Para pensar mais livremente em Deus, e para percorrer as moradas do céu
em seus êxtases frequentes, vivendo na riqueza da graça diante do dulcíssimo e
sereníssimo Senhor do universo, confiou o cuidado de sua pessoa a alguns frades
verdadeiramente dignos de sua predileção. Eram homens virtuosos, entregues ao
Senhor, gratos aos santos, aceitos pelos homens, sobre os quais o santo pai Francisco
se apoiava como uma casa sobre quatro pilares.
Não lhes vou citar os nomes agora
em respeito a sua modéstia, que sempre foi íntima amiga desses santos frades. A
modéstia, aliás, é ornamento de todas as idades, testemunha da inocência,
indício de um coração puro, norma de conduta, glória especial da consciência,
guarda de boa fama e distintivo de toda honestidade. Foi a virtude que adornou
esses companheiros do santo e os tornou amáveis e aceitos por todos. Foi uma
graça comum a todos, mas cada um tinha sua virtude. Um deles se destacava por
sua discrição, outro era de uma paciência fora do comum, outro de renomada
simplicidade e o último juntava à robustez do corpo a mansidão de espírito.
Todos cuidavam da tranquilidade do santo pai com toda a atenção, esforço e boa vontade.
Tratavam também de sua doença sem
poupar sacrifícios e fadigas para estarem ao inteiro dispor do santo.
103. Embora já consumado em graça
diante de Deus e resplandecendo em obras diante dos homens deste mundo, o santo
pai estava sempre pensando em empreender coisas mais perfeitas e, como soldado
veterano das batalhas de Deus, provocava o adversário para novos combates.
Propunha-se a grandes proezas
sob
a orientação de Cristo e, mesmo semimorto pela falta de saúde, esperava
triunfar do inimigo numa nova refrega. De fato, a virtude verdadeira não
conhece fim, pois sabe que sua recompensa é eterna. Ardia, por isso, em um
desejo enorme de voltar à humildade do começo, e seu amor era tão grande e
alegremente esperançoso, que queria reduzir seu corpo à primitiva servidão,
embora já estivesse no limite de suas forças.
Afastavam de si os obstáculos de
todas as preocupações e freava de uma vez a agitação de todas as solicitudes.
Precisando moderar seu rigor antigo por causa da doença, dizia: "Vamos
começar a servir a Deus, meus irmãos, porque até agora fizemos pouco ou
nada". Não pensava que já tivesse conseguido dominar-se mas, firme e incansável
na busca da renovação espiritual, estava sempre pensando em começar.
Queria voltar a servir os
leprosos e ser desprezado como nos outros tempos. Queria fugir ao convívio das
pessoas e ir para os lugares mais afastados, para se livrar de todos os
cuidados e preocupações com as outras coisas, e ficar separado de Deus apenas
pela parede provisória do corpo.
104. Percebendo que muitos
queriam alcançar cargos e honrarias e detestando sua temeridade, tentou
afastá-los dessa peste por seu próprio exemplo. Dizia que seria coisa aceitável
e boa diante de Deus assumir o governo dos outros mas só deviam assumir o cuidado
das almas os que em tal ofício não buscam seus interesses mas acima de tudo
atendem à vontade de Deus. Que não deveriam antepor coisa nenhuma à sua própria
salvação nem esperar de seus súditos aplausos mas aproveitamento, nem deviam
querer os favores dos homens mas a glória de Deus. Não deveriam ambicionar cargos
mas temê-los. O que possuíam não devia orgulhá-los mas humilhá-los, e o que
lhes fosse tirado não os devia abater mas exaltar.
Dizia que mandar era coisa muito
perigosa, especialmente neste tempo em que a maldade transbordou e a iniquidade
superabundou, mas que obedecer era sempre melhor. Sofria porque muitos tinham abandonado
os primeiros trabalhos e se haviam esquecido da simplicidade antiga para
seguirem novos rumos. Queixava-se dos que no começo tinham procurado com ardor
as coisas do alto mas tinham acabado por cair em ambições vulgares e terrenas
e, deixando as verdadeiras alegrias, corriam atrás de frivolidades e ambições,
no campo das pretensas liberdades. Suplicava a clemência de Deus pela
libertação de seus filhos e pedia com ardor que os conservasse na graça que
tinham recebido.
CAPÍTULO 7. Volta
de Sena para Assis. Permanência em Santa Maria da Porciúncula. Bênção para os
frades
105. Seis meses antes de sua
morte, estando em Sena para cuidar da doença dos olhos, começou a ficar
gravemente enfermo em todo o resto do corpo. Seu estômago se desfez pelos
problemas contínuos e por males do fígado, e vomitou muito sangue, parecendo
estar quase à morte. Ao ser informado, Frei Elias veio de longe, o mais
depressa possível, para junto dele. Quando chegou, o santo pai melhorou tanto,
que pôde sair daquela terra e ir com ele para Celle, perto de Cortona. Mas,
pouco depois de ter chegado, seu ventre se intumesceu, incharam-se as pernas e
os pés, e o estômago piorou cada vez mais, mal podendo reter algum alimento.
Pediu, então, a Frei Elias, que o fizesse levar para Assis.
O bom filho atendeu o que lhe
pedia o bondoso pai, preparou tudo e levou-o para onde desejava. Alegrou-se a
cidade com a chegada do bem-aventurado pai, e todos louvavam a Deus. Toda a
multidão do povo sabia que o santo de Deus ia morrer logo, e foi por isso que
se alegrou tanto.
106. De fato, foi por disposição
de Deus que sua santa alma, livre do corpo, partiu para o reino dos céus do
mesmo lugar em que, ainda na carne, teve o primeiro conhecimento das coisas
espirituais e lhe foi infundida a unção salvadora. Sabia que o Reino dos Céus
está em toda parte e que em qualquer lugar a graça divina pode ser dada aos
escolhidos de Deus, mas a experiência lhe ensinara que aquele local da igreja
de Santa Maria da Porciúncula estava cheio de graça mais abundante e era frequentado
pelos espíritos celestiais.
Dizia muitas vezes a seus irmãos:
"Não saiam nunca deste lugar, meus filhos. Se os puserem para fora por um
lado, entrem pelo outro, porque este lugar é verdadeiramente santo e habitação
de Deus. Aqui o Altíssimo nos deu crescimento quando ainda éramos poucos. Aqui
iluminou o coração de seus pobres com a luz de sua sabedoria. Aqui incendiou
nossas vontades com o fogo do seu amor. Quem orar com devoção neste lugar
conseguirá o que pedir, e quem o desrespeitar será mais gravemente punido. Por
isso, filhos, tenham todo o respeito para com o lugar onde Deus mora, e louvem
aqui o Senhor com todo o seu coração, entre gritos de júbilo e de louvor".
107. Nesse meio tempo, a doença
se agravou, desvanecido todo o vigor de seu corpo e, já sem forças, não se
podia mover de maneira alguma. Perguntando-lhe um frade o que preferia
suportar: essa doença constante e demorada ou o martírio violento nas mãos
de
um carrasco, respondeu: "Filho, para mim a melhor coisa, a mais agradável
e desejável sempre consistiu em fazer o que o Senhor mais desejar de mim e em
mim. A única coisa que desejo é estar sempre de acordo e obedecendo à sua
vontade em tudo e por tudo. Para mim, no entanto, suportar esta doença, mesmo
que seja por mais três dias, seria mais doloroso do que qualquer martírio. Não estou
falando de recompensa por merecimento, mas apenas do sofrimento que a doença
traz consigo".
Duas vezes mártir era ele, que
suportava de boa vontade, risonho e alegre, o que para os outros era duro e
insuportável só de ver! De fato, "não tinha sobrado nele membro algum sem
excessiva dor". Já tinha perdido o calor natural e se aproximava cada vez
mais da morte. Espantavam-se os médicos e admiravam-se os frades de que seu
espírito pudesse viver em um corpo já tão morto, pois a carne já se havia
consumido e estava reduzido a pele e ossos.
108. Vendo aproximar-se o último
dia, que inclusive já lhe fora revelado divinamente dois anos antes, chamou os
frades que quis, abençoou a cada um conforme lhe foi inspirado pelo céu, como outrora
o patriarca Jacó com seus filhos, e mesmo como um outro Moisés antes de subir
ao monte que Deus lhe havia indicado, cumulou de bênçãos os filhos de Israel.
Frei Elias estava à sua esquerda
e os outros filhos sentados ao redor. O santo cruzou os braços e pôs a mão direita
sobre a cabeça dele. Privado como estava da luz e do uso dos olhos do corpo, perguntou:
- "Sobre quem coloquei minha
mão direita?"
- "Sobre Frei Elias",
responderam.
- "É isso que eu
quero", disse. "Eu te abençoo, meu filho, em tudo e por tudo, e como
o Senhor em tuas mãos aumentou os meus irmãos e filhos, assim sobre ti e em ti
a todos eu abençoo. No céu e na terra
te
abençoe Deus, Rei do Universo. Abençoo-te como eu posso, mais do que eu posso,
e, o que eu não posso, que possa em teu benefício aquele que pode tudo.
Lembre-se Deus de tua ação e dos teus trabalhos, e reserve o teu lugar na
retribuição dos justos. Que tenhas toda bênção que desejas e alcances tudo que
pedires com justiça".
- "Adeus, meus filhos, vivei
sempre no temor do Senhor, porque as maiores provações vos ameaçam e a
tribulação está às portas. Felizes os que perseverarem no que empreenderam,
porque os escândalos que estão para vir vão afastar alguns do seu meio. Eu me
apresso a ir para a casa do Senhor, para o meu Deus vou com confiança, porque o
servi com devoção".
Como estivesse hospedado no
palácio do bispo de Assis, pediu aos frades que o levassem o mais depressa
possível para Santa Maria da Porciúncula. Queria entregar sua alma a Deus
naquele lugar em que, como dissemos, começou a entender com perfeição o caminho
da verdade.
CAPÍTULO 8. Suas
últimas palavras, desejos e atos
109. Já tinham passado vinte anos
desde sua conversão e, como lhe fora comunicado por divina revelação, estava
próxima sua última hora. De fato, quando o bem-aventurado Francisco e Frei
Elias moravam juntos em Foligno, certa noite apareceu em sonho a Frei Elias um
sacerdote vestido de branco, de idade muito avançada e aspecto venerável, e
disse: "Levanta-te, irmão, e diz a Frei Francisco que já se passaram dezoito
anos desde que renunciou ao mundo e aderiu a Cristo. Permanecerá só mais dois
anos nesta vida e depois, chamado pelo Senhor, seguirá o caminho de toda carne
mortal".
Era o que estava acontecendo,
para que a seu tempo fosse realizada a palavra de Deus, anunciada com tal
antecedência. Tendo descansado uns poucos dias no lugar que tanto amava,e sabendo
que tinha chegado a hora de morrer, chamou dois frades, filhos seus prediletos,
e lhes mandou que cantassem em voz alta os Louvores do Senhor, na alegria do
espírito pela morte, ou antes pela Vida, já tão próxima.
Ele mesmo entoou como pôde o
Salmo de Davi: "Em alta voz clamo ao Senhor, em alta voz suplico ao
Senhor".
Um dos frades presentes, pelo
qual o santo tinha a maior amizade, e que era muito solícito por todos os
irmãos, vendo isso e sabendo que a morte do santo estava próxima, disse-lhe:
"Ó pai bondoso, teus filhos vão ficar sem pai, vão ficar sem a verdadeira
luz de seus olhos! Lembra-te dos órfãos que estás deixando, perdoa todas as nossas
culpas e alegra com tua santa bênção tanto os presentes como os ausentes!"
Respondeu-lhe o santo:
"Filho, estou sedo chamado por Deus. A meus irmãos, tanto presentes como
ausentes, perdôo todas as ofensas e culpas, e os absolvo quanto me é possível.
Leva esta notícia para todos e abençoa-os de minha parte".
110. Mandou trazer, então, o
livro dos Evangelhos e pediu que lessem o trecho de São João no lugar que
começa: "Seis dias antes da Páscoa, sabendo Jesus que sua hora tinha
chegado e devia passar deste mundo para o Pai..." Era justamente o
Evangelho que o ministro tinha pensado em ler, antes que lhe fosse dada a
ordem. E abriram o livro nesse ponto na primeira vez, embora fosse uma Bíblia
inteira o livro em que estavam procurando o Evangelho.
Depois, mandou que lhe pusessem
um cilício e jogassem cinzas por cima, porque dentro em breve seria pó e cinza.
Estando presentes muitos irmãos, de quem ele era o pai e guia, a esperar com
reverência o fim ditoso e bem-aventurado, sua alma santíssima desprendeu-se da
carne e foi absorvida pelo abismo da claridade, enquanto seu corpo adormecia no
Senhor.
Um de seus irmãos e discípulos,
não pouco famoso, cujo nome acho melhor calar agora, porque enquanto viveu na
carne não quis gloriar-se desse fato, viu a alma do pai santíssimo subindo
diretamente para o céu, acima das grandes águas. Era como uma estrela do tamanho
da lua e com toda a claridade do sol, levada por uma nuvenzinha branca.
CAPÍTULO 9.
Lamentação dos frades e sua alegria ao lhe descobrirem os sinais da cruz. As asas
do Serafim.
112. Acorreram as multidões
louvando a Deus e dizendo: "Louvado e bendito sejas, Senhor nosso Deus,
que a nós indignos confiaste tão santos despojos! Louvor e glória a ti,
Trindade inefável!"
A cidade de Assis veio em peso, e
a região inteira acorreu para contemplar os prodígios divinos que o Senhor da
majestade realizara gloriosamente no seu santo servo. Cada um entoava seu canto
de alegria, conforme lhe inspirava a alegria do coração, e todos bendiziam a
onipotência do Salvador que tinha cumprido seus desejos.
Mas os filhos choravam por ter
perdido semelhante pai e mostravam com lágrimas e suspiros a piedosa afeição de
seus corações. Mas um gozo inaudito temperava a tristeza e a singularidade do milagre
enchera-os de assombro. Mudou-se o luto em cântico e o pranto em júbilo. Nunca
tinham ouvido falar nem tinham lido sobre o que seus olhos estavam agora vendo.
Se o testemunho não fosse tão evidente, mal poderiam acreditar.
Brilhava nele uma representação
da cruz e da paixão do Cordeiro imaculado, que lavou os crimes do mundo,
parecendo que tinha sido tirado havia pouco da cruz, com as mãos e os pés
atravessados pelos cravos e o lado como que ferido por uma lança.
Contemplavam sua pele, escura em
vida, brilhando de alvura, e confirmando por sua beleza o prêmio da
bem-aventurada ressurreição. Viam seu rosto como o de um anjo, como se
estivesse vivo e não morto, e seus membros tinham adquirido a flexibilidade e a
contextura de uma criança. Seus nervos não se contraíram, como acontece com os
mortos. A pele não se endureceu e os membros não se enrijeceram, mas dobravam
para onde se quisesse.
113. Resplandecendo essa
admirável beleza diante de todos os que assistiam, e como sua carne tinha
ficado mais alva, era admirável ver em suas mãos e pés não as feridas dos
cravos mas os próprios cravos, formados por sua carne, com a cor escura do
ferro, e o seu lado direito rubro de sangue. Os sinais do martírio não incutiam
horror nos que olhavam, mas emprestavam muita beleza e graça, como pedrinhas
pretas num pavimento branco.
Acorriam os frades seus filhos e,
chorando, beijavam as mãos e os pés do piedoso pai que os deixava, e também o
lado direito, cuja chaga era uma lembrança preclara daquele que também derramou
sangue e água desse mesmo lugar e assim nos reconciliou com o Pai.
As pessoas do povo achavam que
era o maior favor serem admitidas não apenas para beijar mas até só para ver os
sagrados estigmas de Jesus Cristo, que São Francisco trazia em seu corpo.
Quem, diante dessa visão, não
seria levado mais à alegria do que ao pranto? Se alguém chorava era mais pelo
gozo que pela dor. Quem teria um coração de ferro para ficar sem gemer? Quem
teria um coração de pedra, que não se partisse de compunção, não se acendesse
pelo amor divino, não se enchesse de boa vontade? Quem poderia ser tão duro e
insensível que não chegasse a entender que o santo, honrado na terra por esse
privilégio especial, devia ser exaltado no céu com uma glória inefável?
114. Ó dom singular, sinal de
predileção: o soldado estava ornado com as mesmas armas gloriosas que cabiam
unicamente ao Rei por sua altíssima dignidade! O' milagre digno de eterna
memória, prodígio para ser admirado reverentemente sem cessar, porque representa
aos olhos da fé o mistério em que o sangue do Cordeiro imaculado correu
copiosamente pelas cinco chagas e lavou os crimes do mundo! O' esplendor
sublime de uma cruz vivificante, que dá vida aos mortos, cujo peso oprime com
tanta suavidade e fere com tanta doçura que faz o corpo morto reviver e dá
força ao espírito combalido! Amou-te muito aquele que ornaste com tanta glória!
Glória e bênção sejam dadas só ao
Deus sábio que renova os sinais e muda as maravilhas, para que a mente dos
fracos se console com as novas revelações, e para que, pela prodígio das coisas
visíveis, seu coração seja arrebatado de amor pelas coisas invisíveis!
Estupendo e amável desígnio de
Deus! Para prevenir as desculpas da nossa incredulidade diante da raridade do
prodígio, quis primeiro realizar naquele que veio do céu o milagre que Ele ia
fazer pouco depois num habitante da terra!
Assim quis o Pai de misericórdia mostrar
que prêmio merece quem procura amá-lo de todo o coração, pois o colocou na mais
elevada ordem de espíritos celestes, a que dele está mais próxima.
Também nós chegaremos lá, sem
dúvida nenhuma, se, à maneira do Serafim, estendermos duas asas acima da
cabeça: isto é, se como São Francisco dirigirmos para Deus uma intenção pura e
um reto modo de agir em toda obra boa,
tratando infatigavelmente de agradá-lo acima de tudo. Elas têm que se juntar
para velar a cabeça, porque o Pai das luzes, que disse: "Se o teu olho for
puro, todo o teu corpo será luminoso, mas se for mau, todo o teu corpo será
tenebroso" não vai aceitar como boa uma obra feita sem reta intenção, e de
nada valerá a reta intenção que não levar a uma obra boa.
Não é puro o olho que não vê o
que deve por falta de conhecimento da verdade, ou que olha para o que não deve
ver, por falta de intenção pura.
No primeiro caso, não é puro mas
cego, e no segundo, está claro que é mau. As penas dessas asas são o amor do
Pai, que salva com misericórdia, e o temor do Senhor, que julga com inflexibilidade:
elas é que devem suspender das coisas terrenas o pensamento dos eleitos,
reprimindo as tendências más e suscitando castos sentimentos.
Outras duas asas são para voar e
cumprir o duplo dever de caridade para com o próximo: alimentar-lhe a alma com
a palavra de Deus e sustentar-lhe o corpo com os recursos da terra.
Estas asas raramente se juntam,
porque é difícil para uma só pessoa cumprir as duas tarefas. Suas penas são as
diversas obras necessárias para aconselhar e ajudar o próximo.
Com as duas últimas asas, devemos
envolver o corpo despido de merecimentos. Nós o conseguimos se, todas as vezes
que tiver sido despido pelo pecado, o revestirmos de inocência pela contrição e
a confissão. Suas penas são os múltiplos afetos que nascem da execração do
pecado e da sede de justiça.
115. O bem-aventurado pai São
Francisco, que teve a imagem e a forma de um Serafim, fez tudo isso com
perfeição, porque perseverou na cruz e mereceu voar para a altura dos espíritos
sublimes. Viveu sempre na cruz, sem fugir jamais das fadigas ou sofrimentos,
para poder cumprir por si mesmo e na sua pessoa a vontade de Deus.
Os frades que conviveram com ele
sabem, além disso, que estava todos os dias e a toda hora falando sobre Jesus,
e como seu jeito de falar era doce, suave, bondoso e cheio de amor. Falava da abundância
do coração, e estava sempre transbordando a fonte de amor iluminado que lhe
enchia todo o interior.
Tinha Jesus de muitos modos:
levava sempre Jesus no coração, Jesus na boca, Jesus nos ouvidos, Jesus nos
olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros.
Quantas vezes, sentado para o
almoço, esquecia o alimento corporal se ouvia o nome de Jesus, ou o mencionava,
ou pensava nele. Como lemos a respeito de um santo: "Olhava, mas não via;
ouvia mas não escutava. Também foram muitas as vezes em que estava viajando e, pensando
em Jesus ou cantando para ele, esquecia- se do caminho e convidava todas as
criaturas a louvarem a Jesus.
E porque conservava sempre com
amor admirável em seu coração Cristo Jesus, e Jesus crucificado, foi marcado
por seu sinal com uma glória superior à de todos os outros. Em êxtases,
contemplava-o numa glória indizível e incompreensível, sentado à direita do
Pai, com o qual, Filho do Altíssimo e igualmente Altíssimo, na unidade do
Espírito Santo vive e reina, vence e impera, Deus eternamente glorioso por
todos os séculos dos séculos. Amém.
CAPÍTULO 10. Pranto
das senhoras em São Damião. Louvor e glória de seu sepultamento
116. Os frades seus filhos, que
tinham acorrido com toda a multidão das cidades vizinhas, contentes por
participar de tão solene funeral, passaram toda aquela noite em que morreu o
santo pai dando louvores a Deus: pela suavidade do júbilo e pela claridade das
luzes até parecia que eram os anjos a velar.
Quando amanheceu, juntou-se a
multidão de Assis com todo o clero e, carregando o sagrado corpo do lugar em
que morrera, levaram-no para a cidade entre hinos e louvores, tocando
trombetas. Cada um levava um ramo de oliveira ou de outras árvores e seguiam solenemente
o enterro, com muitas luminárias e cantando louvores em alta voz.
Quando o cortejo, formado pelos
filhos que levavam o pai e pelo rebanho que acompanhava o pastor em busca do
Pastor supremo, chegou ao lugar em que ele tinha fundado a Ordem das santas virgens
e senhoras pobres, depositaram-no na igreja de São Damião, em que moravam
aquelas suas filhas, por ele conquistadas para o Senhor. Abriu-se então a
janelinha pela qual as servas de Deus costumavam receber a comunhão no tempo
determinado. Abriu-se também a arca em que o tesouro de virtudes supercelestes
estava guardado e em que estava sendo levado por poucos aquele que costumava
arrastar tanta gente. Então a senhora Clara, verdadeiramente clara pela
santidade de seus merecimentos, primeira mãe das outras porque tinha sido a
primeira plantinha da Ordem, aproximou-se com suas filhas para ver o pai, que
já não lhes falaria e estava a caminho de outras paragens, para não mais
voltar.
117. Suspirando e gemendo muito,
olhavam para ele em lágrimas e começaram a clamar com voz embargada: "Pai,
pai, que vai ser de nós? Pobres de nós, por que nos abandonas? A quem nos
entregas, assim desamparadas? Por que não nos deste a alegria de ir à tua frente
e nos deixaste sofrendo deste jeito? Que mandas que façamos, presas neste
cárcere, pois nunca mais virás visitar-nos, como costumavas? Contigo vai-se
embora toda a nossa consolação.
Não haverá mais conforto igual
para nós que nos enterramos para o mundo! Quem nos acudirá em tamanha pobreza,
não só de méritos como de bens materiais? O' pai dos pobres e amigo da pobreza!
Quem nos socorrerá nas provações, dize-nos tu, que passaste por tantas e eras
um precavido conhecedor desses males! Quem nos consolará nas tribulações,
dize-nos tu, que nos socorreste em tantas que nos assaltaram! Amarga separação,
cruel ausência! O' morte horrorosa, que trucidas milhares de filhos e filhas,
privando-nos desse pai, apressando-te em levá-lo para longe sem retorno, ele a quem
devemos o grande florescimento de nossos esforços, se é que alguma coisa
temos!"
Mas o virginal pudor lhes
embargava o pranto, e não ficava bem chorar demais por ele, quando em sua morte
tinham acorrido multidões de anjos, alegrando-se os cidadãos dos céus e os que moram
na casa de Deus. Entre a tristeza e a alegria, beijavam suas mãos esplêndidas,
ornadas de pedras preciosas a brilhar. Quando ele foi levado, fechou-se para
elas a porta, que jamais poderá ser aberta para outra dor comparável.
Que compaixão enorme tiveram
todos pelo seu sofrido e piedoso lamento! Os maiores gemidos foram,
principalmente, os de seus filhos entristecidos! Todos partilhavam sua dor,
porque era impossível reprimir as lágrimas quando os anjos da paz choravam com
amargura.
118. Por fim, chegando à cidade,
colocaram com grande alegria e júbilo o seu corpo santíssimo no lugar sagrado,
que passou a ser mais sagrado. Para glória de Deus todo-poderoso, dali ele
ilumina o mundo numa profusão de milagres, do mesmo modo que antes o iluminava
pela doutrina de sua santa pregação. Demos graças a Deus. Amém.
Santíssimo
e abençoado pai, procurei honrar-te com justos e merecidos louvores, embora
insuficientes, e narrei por escrito todos os teus feitos. Concede agora que
este pobre frade seja digno de te seguir no presente para que, pela
misericórdia de Deus, possa te acompanhar no futuro. Lembra-te piedosamente dos
pobres filhos para os quais mal sobrou alguma consolação depois que te foste,
tu que eras o seu único e especial consolo. Porção primeira e melhor de sua
herança, foste admitido nos coros dos anjos e colocado no trono glorioso dos
Apóstolos, mas eles jazem na lama, presos num cárcere escuro, e clamam por ti
em seu pranto: "Ó pai, apresenta a Jesus Cristo, Filho do Pai Eterno, os
seus sagrados estigmas, e mostra os sinais da cruz no lado, nos pés e nas mãos,
para que ele se digne ter a misericórdia de mostrar suas próprias chagas ao Pai
que, por certo, olhando para elas, sempre vai ter piedade de nós, pobres
pecadores. Amém! Assim seja! Assim seja!" Termina o segundo livro.
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