Testamento de Clara de Assis
Introdução:
Parece
certo que Clara o ditou depois de 6 de agosto de 1247, quando Inocêncio IV
publicou a sua Regra permitindo propriedades. Mas também pode ter feito retocar
o escrito até seu último ano de vida, 1253. Clara não alude à Regra, mas é bom
lembrar que ela só conseguiu a aprovação papal de sua Forma de Vida dois dias
antes de morrer, e o Testamento era um documento com que ela podia garantir os
principais valores de sua família.
A
ideia de fazer um testamento pode ter sido tomada do de São Francisco, mas
Clara é totalmente original. Celebra o Senhor por sua vida e por sua vocação e
exorta as Irmãs a serem fiéis. Faz uma recordação muito pessoal de sua
conversão e dos primeiros passos da Ordem. Afirma com decisão o compromisso com
a pobreza absoluta. Insiste sobre o clima de fraternidade evangélica com
serviço mútuo. Faz uma reflexão sobre a fé. Exorta à oração e à perseverança e
termina com uma bênção. Clara quer deixar uma exortação que mantenha estável
sua fundação.
Apesar
de ser um documento preocupado com a “forma de vida” das Irmãs Pobres, é também
autobiográfico e já tem um valor bem maior que o da “Regra” para demonstrar a
personalidade ímpar e a espiritualidade da grande mãe da família franciscana.
Ela se declara uma simples “plantinha", sem poder esconder que é uma
estrela de primeira grandeza, com luz semelhante à de São Francisco, mas bem
própria.
Testamento
1 Em nome do Senhor! (cfr. Col
3,17) Amém!
2 Entre outros benefícios que
temos recebido e ainda recebemos diariamente da generosidade do Pai de toda
misericórdia (cfr. 2Cor 1,3) e pelos quais mais temos que agradecer ao glorioso
Pai de Cristo,
3 está a nossa vocação que,
quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida.
4 Por isso diz o Apóstolo:
“Reconhece a tua vocação” (cf. 1Cor 1,26).
5 O Filho de Deus fez-se para
nós o Caminho (cf. Jo 14,6; 1Tm 4,12), que nosso bem-aventurado pai Francisco,
que o amou e seguiu de verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e exemplo.
6 Por isso, queridas Irmãs,
devemos considerar os imensos benefícios que Deus nos concedeu,
7 mas, entre outros, aqueles que
Ele se dignou realizar em nós por seu dileto servo, nosso pai São Francisco,
8 não só depois de nossa
conversão mas também quando estávamos na miserável vaidade do mundo.
9 Pois, quando o santo, logo
depois de sua conversão, sem ter ainda irmãos ou companheiros,
10 estava construindo a igreja
de São Damião, em que foi visitado plenamente pela graça divina, e foi impelido
a abandonar totalmente o mundo,
11 numa grande alegria e
iluminação do Espírito Santo, profetizou a nosso respeito aquilo que o Senhor
veio a cumprir mais tarde.
12 Pois, nessa ocasião,
subindo ao muro da igreja, ele disse em voz alta e em francês para uns pobres
que moravam ali perto:
13 Venham me ajudar na obra do
mosteiro de São Damião,
14 porque nele ainda haverão
de morar umas senhoras cuja vida famosa e santo comportamento vão glorificar
nosso Pai celestial (cfr. Mt 5,16) em toda a sua santa Igreja.
15 Nisso nós podemos
considerar, portanto, a copiosa bondade de Deus para conosco,
16 pois, em sua imensa
misericórdia e amor, dignou-se contar essas coisas sobre nossa vocação e
eleição (cfr. 2Pd 1,10), através do seu santo.
17 E o nosso bem-aventurado
pai Francisco não profetizou isso só a nosso respeito, mas também sobre as
outras que haveriam de vir, na santa vocação em que Deus nos chamou.
18 Com que solicitude, então,
com que zelo da mente e do corpo devemos observar o que foi mandado por Deus e
por nosso pai, para restituir o talento multiplicado, com a colaboração do
Senhor!
19 Pois o próprio Senhor
colocou-nos não só como modelo, exemplo e espelho para os outros, mas também
para nossas irmãs, que ele vai chamar para a nossa vocação,
20 para que também elas sejam
espelho e exemplo para os que vivem no mundo.
21 Portanto, se o Senhor nos
chamou a coisas tão elevadas que em nós possam espelhar-se as que deverão ser
exemplo e espelho para os outros,
22 estamos bem obrigadas a
bendizer e louvar a Deus, dando força ainda maior umas às outras para fazer o
bem no Senhor.
23 Por isso, se vivermos de
acordo com essa forma, daremos aos outros um nobre exemplo (cfr. 2Mc 6,28.31) e
vamos conquistar o prêmio da bem-aventurança eterna com um trabalho muito
breve.
24 Depois que o Altíssimo Pai
celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar meu coração para
fazer penitência segundo o exemplo e ensino de nosso bem-aventurado pai
Francisco,
25 pouco depois de sua
conversão, com algumas irmãs que Deus me dera logo após a minha conversão, eu
lhe prometi obediência voluntariamente,
26 como o Senhor nos concedera
pela luz da sua graça através da vida admirável e do ensinamento dele.
27 Vendo o bem-aventurado
Francisco que nós, embora frágeis e fisicamente sem forças, não recusávamos
nenhuma privação, pobreza, trabalho, tribulação, nem humilhação ou o desprezo
do mundo,
28 e até julgávamos tudo isso
as maiores delícias, como pôde comprovar freqüentemente em nós a exemplo dos
santos e dos seus frades, alegrou-se muito no Senhor.
29 E movido de piedade para
conosco, assumiu o compromisso, por si e por sua Ordem, de ter sempre por nós o
mesmo cuidado diligente e a mesma atenção especial que tinha para com seus
irmãos.
30 E assim, por vontade de
Deus e do nosso bem-aventurado pai Francisco, fomos morar junto da igreja de
São Damião,
31 onde em pouco tempo o
Senhor nos multiplicou por sua misericórdia e graça, a fim de que se cumprisse
o que tinha predito por seu santo.
32 Pois antes tínhamos morado
em outro lugar, embora por pouco tempo.
33 Depois escreveu para nós
uma forma de vida, principalmente para que perseverássemos sempre na santa
pobreza.
34 E não se contentou em
exortar-nos durante a sua vida com muitos sermões (cfr. Act 20,2) e exemplos ao
amor e observância da santa pobreza, mas nos deu muitos escritos, para que
depois de sua morte não nos desviássemos dela de modo algum,
35 como o Filho de Deus,
enquanto viveu neste mundo, não quis jamais afastar-se da santa pobreza.
36 Também o nosso
bem-aventurado pai Francisco, imitando os seus passos(cfr. 1Pd 2,21), pelo
exemplo e pelo ensinamento, nunca se desviou, em toda a vida, de sua santa
pobreza, que escolheu para si e seus irmãos.
37 Por isso eu, Clara, serva
de Cristo e das Irmãs Pobres do mosteiro de São Damião, embora indigna, e
verdadeira plantinha do santo pai, considerando com as minhas outras Irmãs a
nossa tão alta profissão e o mandamento de tão grande pai,
38 como também a fragilidade
de outras, que temíamos em nós mesmas depois do falecimento do nosso pai São
Francisco, que era a nossa coluna e única consolação depois de Deus e o nosso
apoio (cfr. 1Tm 3,15),
39 repetidas vezes fizemos
nossa entrega voluntária a nossa santíssima Senhora Pobreza, para que, depois
de minha morte, as Irmãs que estão e as que vierem não possam de maneira alguma
afastar-se dela.
40 E como sempre fui cuidadosa
e solícita em observar a santa pobreza que prometemos ao Senhor e ao nosso
bem-aventurado pai Francisco, e em fazer que fosse observada pelas outras,
41 assim sejam obrigadas até o
fim aquelas que vão me suceder no ofício a observar e fazer observar sua santa
pobreza, com o auxílio de Deus.
42 Para maior segurança, tive
a preocupação de conseguir do senhor papa Inocêncio, em cujo tempo começamos, e
dos seus outros sucessores, que corroborassem com os seus privilégios a nossa
profissão da santíssima pobreza, que prometemos ao Senhor e ao nosso
bem-aventurado pai,
43 para que em tempo algum nos
afastássemos dela de maneira alguma.
44 Por isso, de joelhos
dobrados e prostrada de corpo e alma, recomendo todas as minhas Irmãs atuais e
futuras à santa mãe Igreja Romana, ao Sumo Pontífice e principalmente ao senhor
cardeal que for encarregado da Ordem dos Frades Menores e de nós,
45 para que, por amor daquele
Deus que pobre foi posto no presépio (cfr. Luc 12,32), viveu pobre no mundo e
ficou nú no patíbulo,
46 faça com que sempre o seu
pequeno rebanho (cfr. Lc 12,32), que o Senhor Pai gerou em sua Igreja pela
palavra e o exemplo do nosso bem-aventurado pai São Francisco para seguir a
pobreza e a humildade do seu Filho dileto e da Virgem, sua gloriosa Mãe,
47 observe a santa pobreza que
prometemos a Deus e a nosso bem-aventurado pai Francisco e nela digne-se
encorajá-las e conserva-las.
48 E como o Senhor nos deu
nosso bem-aventurado pai Francisco como fundador, plantador16 e auxílio no
serviço de Cristo e naquilo que prometemos ao Senhor e ao nosso pai,
49 e como ele durante a sua
vida mostrou tanto cuidado em palavras e obras para tratar e cuidar de nós, sua
plantinha,
50 assim recomendo e confio
minhas Irmãs, presentes e futuras, ao sucessor do nosso bem-aventurado pai
Francisco e a toda a Ordem,
51 para que nos ajudem a
crescer sempre mais no serviço de Deus e principalmente a observar melhor a
santa pobreza.
52 Se em algum tempo acontecer
que as Irmãs tenham que deixar este lugar para se estabelecer em outro, sejam
obrigadas, em qualquer lugar em que estiverem depois da minha morte, a observar
a referida forma de pobreza que prometemos a Deus e a nosso bem-aventurado pai
Francisco.
53 A que estiver no ofício
deve ser tão solícita e previdente como as outras Irmãs para não adquirir nem
receber junto a esse lugar nenhuma terra a não ser a que for exigida pela
extrema necessidade para a horta em que temos que cultivar verduras.
54 Mas se em algum lugar, para
honestidade e para isolamento do mosteiro for conveniente ter mais terreno além
da cerca da horta, não permitam que seja adquirido ou mesmo recebido mais do
que for pedido pela necessidade extrema.
55 E essa terra não deve ser
trabalhada nem semeada mas ficar sempre baldia e inculta.
56 No Senhor Jesus Cristo,
aconselho e admoesto a todas as minhas Irmãs, presentes e futuras, que sempre
se empenhem em seguir o caminho da santa simplicidade, da humildade, da pobreza
e também uma vida honesta e santa,
57 como aprendemos de Cristo e
de nosso bem-aventurado pai Francisco desde o início de nossa conversão.
58 Foi dessas coisas que, não
por nossos méritos mas só por misericórdia e graça de quem o deu, o Pai das
misericórdias, espalhou-se o perfume (cfr. 2Cor 1,3; 2,15) da boa reputação,
tanto para os de longe como para os de perto.
59 E amando-vos umas às outras
com a caridade de Cristo, demonstrai por fora, por meio das boas obras, o amor
que tendes dentro,
60 para que, provocadas por
esse exemplo, as Irmãs cresçam sempre no amor de Deus e na mútua caridade.
61 Rogo também à que estiver a
serviço das Irmãs que trate de estar à frente das outras mais por virtudes e
santos costumes do que pelo ofício,
62 de forma que suas Irmãs,
provocadas por seu exemplo, não obedeçam tanto por dever como por amor.
63 Seja também previdente e
discreta para com suas Irmãs, como uma boa mãe faz com suas filhas,
64 tratando especialmente de
provê-las de acordo com as necessidades de cada uma, com as esmolas que forem
dadas pelo Senhor.
65 Também seja tão bondosa e
acessível que possam manifestar com segurança suas necessidades
66 e recorrer a ela
confiadamente a qualquer hora, como lhes parecer conveniente, tanto por si
mesmas, como por suas Irmãs.
67 Mas as Irmãs que são
súditas lembrem-se de que renunciaram à própria vontade por amor de Deus.
68 Por isso quero que obedeçam
à sua mãe, como prometeram ao Senhor, espontaneamente,
69 de modo que sua mãe, vendo
o amor, a humildade e a unidade que as Irmãs têm entre si, possa levar mais
facilmente o peso que tem que suportar por causa do ofício,
70 e o que é molesto e amargo
mude-se em doçura para ela pelo bom comportamento das Irmãs.
71 E como é estreito o caminho
e apertada a porta por onde se vai e se entrana vida, são poucos os que por aí
passam e entram (cfr. Mt 7,13.14).
72 E se há alguns que nele
andam por um tempo, são pouquíssimos os que nele perseveram.
73 Mas felizes são aqueles a
quem foi dado andar por ele e perseverar até o fim (cfr. Sl 118,1; Mt 10,22).
74 Tomemos cuidado, portanto,
para que, se entramos pelo caminho do Senhor, de maneira alguma nos afastemos
dele em algum tempo por nossa culpa e ignorância,
75 para não ofendermos a tão
grande Senhor, a sua Virgem Mãe, a nosso bem-aventurado pai Francisco, à Igreja
triunfante e mesmo à militante.
76 Pois está escrito: Malditos
os que se desviam de vossos mandamentos (Sl 118,21).
77 Por isso dobro os joelhos
diante do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo (cfr. Ef 3,14) para que, pela
intercessão dos méritos de sua Mãe, a gloriosa Virgem Santa Maria, de nosso
bem-aventurado pai Francisco e de todos os santos,
78 o Senhor que deu o bom
começo dê o crescimento (cfr.1Cor 3,6.7) e também a perseverança até o fim.
Amém.
79 Isto foi escrito, pode ser
melhor para ser observado, eu deixo para você, minhas irmãs muito queridos e
amados, presentes e futuras, como um sinal da bênção do Senhor e nosso
bem-aventurado pai Francisco, e da minha bênção, sua mãe e seu servo.
Aqui é um testemunho da
Santíssima Clara.