segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Testamento de Clara de Assis

Testamento de Clara de Assis



Introdução:
            Parece certo que Clara o ditou depois de 6 de agosto de 1247, quando Inocêncio IV publicou a sua Regra permitindo propriedades. Mas também pode ter feito retocar o escrito até seu último ano de vida, 1253. Clara não alude à Regra, mas é bom lembrar que ela só conseguiu a aprovação papal de sua Forma de Vida dois dias antes de morrer, e o Testamento era um documento com que ela podia garantir os principais valores de sua família. 
            A ideia de fazer um testamento pode ter sido tomada do de São Francisco, mas Clara é totalmente original. Celebra o Senhor por sua vida e por sua vocação e exorta as Irmãs a serem fiéis. Faz uma recordação muito pessoal de sua conversão e dos primeiros passos da Ordem. Afirma com decisão o compromisso com a pobreza absoluta. Insiste sobre o clima de fraternidade evangélica com serviço mútuo. Faz uma reflexão sobre a fé. Exorta à oração e à perseverança e termina com uma bênção. Clara quer deixar uma exortação que mantenha estável sua fundação. 
            Apesar de ser um documento preocupado com a “forma de vida” das Irmãs Pobres, é também autobiográfico e já tem um valor bem maior que o da “Regra” para demonstrar a personalidade ímpar e a espiritualidade da grande mãe da família franciscana. Ela se declara uma simples “plantinha", sem poder esconder que é uma estrela de primeira grandeza, com luz semelhante à de São Francisco, mas bem própria.

Testamento

1 Em nome do Senhor! (cfr. Col 3,17) Amém!
2 Entre outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da generosidade do Pai de toda misericórdia (cfr. 2Cor 1,3) e pelos quais mais temos que agradecer ao glorioso Pai de Cristo,
3 está a nossa vocação que, quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida.
4 Por isso diz o Apóstolo: “Reconhece a tua vocação” (cf. 1Cor 1,26).
5 O Filho de Deus fez-se para nós o Caminho (cf. Jo 14,6; 1Tm 4,12), que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e seguiu de verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e exemplo.
6 Por isso, queridas Irmãs, devemos considerar os imensos benefícios que Deus nos concedeu,
7 mas, entre outros, aqueles que Ele se dignou realizar em nós por seu dileto servo, nosso pai São Francisco,
8 não só depois de nossa conversão mas também quando estávamos na miserável vaidade do mundo.
9 Pois, quando o santo, logo depois de sua conversão, sem ter ainda irmãos ou companheiros,
10 estava construindo a igreja de São Damião, em que foi visitado plenamente pela graça divina, e foi impelido a abandonar totalmente o mundo,
11 numa grande alegria e iluminação do Espírito Santo, profetizou a nosso respeito aquilo que o Senhor veio a cumprir mais tarde.
12 Pois, nessa ocasião, subindo ao muro da igreja, ele disse em voz alta e em francês para uns pobres que moravam ali perto:
13 Venham me ajudar na obra do mosteiro de São Damião,
14 porque nele ainda haverão de morar umas senhoras cuja vida famosa e santo comportamento vão glorificar nosso Pai celestial (cfr. Mt 5,16) em toda a sua santa Igreja.
15 Nisso nós podemos considerar, portanto, a copiosa bondade de Deus para conosco,
16 pois, em sua imensa misericórdia e amor, dignou-se contar essas coisas sobre nossa vocação e eleição (cfr. 2Pd 1,10), através do seu santo.
17 E o nosso bem-aventurado pai Francisco não profetizou isso só a nosso respeito, mas também sobre as outras que haveriam de vir, na santa vocação em que Deus nos chamou.
18 Com que solicitude, então, com que zelo da mente e do corpo devemos observar o que foi mandado por Deus e por nosso pai, para restituir o talento multiplicado, com a colaboração do Senhor!
19 Pois o próprio Senhor colocou-nos não só como modelo, exemplo e espelho para os outros, mas também para nossas irmãs, que ele vai chamar para a nossa vocação,
20 para que também elas sejam espelho e exemplo para os que vivem no mundo.
21 Portanto, se o Senhor nos chamou a coisas tão elevadas que em nós possam espelhar-se as que deverão ser exemplo e espelho para os outros,
22 estamos bem obrigadas a bendizer e louvar a Deus, dando força ainda maior umas às outras para fazer o bem no Senhor.
23 Por isso, se vivermos de acordo com essa forma, daremos aos outros um nobre exemplo (cfr. 2Mc 6,28.31) e vamos conquistar o prêmio da bem-aventurança eterna com um trabalho muito breve.
24 Depois que o Altíssimo Pai celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar meu coração para fazer penitência segundo o exemplo e ensino de nosso bem-aventurado pai Francisco,
25 pouco depois de sua conversão, com algumas irmãs que Deus me dera logo após a minha conversão, eu lhe prometi obediência voluntariamente,
26 como o Senhor nos concedera pela luz da sua graça através da vida admirável e do ensinamento dele.
27 Vendo o bem-aventurado Francisco que nós, embora frágeis e fisicamente sem forças, não recusávamos nenhuma privação, pobreza, trabalho, tribulação, nem humilhação ou o desprezo do mundo,
28 e até julgávamos tudo isso as maiores delícias, como pôde comprovar freqüentemente em nós a exemplo dos santos e dos seus frades, alegrou-se muito no Senhor.
29 E movido de piedade para conosco, assumiu o compromisso, por si e por sua Ordem, de ter sempre por nós o mesmo cuidado diligente e a mesma atenção especial que tinha para com seus irmãos.
30 E assim, por vontade de Deus e do nosso bem-aventurado pai Francisco, fomos morar junto da igreja de São Damião,
31 onde em pouco tempo o Senhor nos multiplicou por sua misericórdia e graça, a fim de que se cumprisse o que tinha predito por seu santo.
32 Pois antes tínhamos morado em outro lugar, embora por pouco tempo.
33 Depois escreveu para nós uma forma de vida, principalmente para que perseverássemos sempre na santa pobreza.
34 E não se contentou em exortar-nos durante a sua vida com muitos sermões (cfr. Act 20,2) e exemplos ao amor e observância da santa pobreza, mas nos deu muitos escritos, para que depois de sua morte não nos desviássemos dela de modo algum,
35 como o Filho de Deus, enquanto viveu neste mundo, não quis jamais afastar-se da santa pobreza.
36 Também o nosso bem-aventurado pai Francisco, imitando os seus passos(cfr. 1Pd 2,21), pelo exemplo e pelo ensinamento, nunca se desviou, em toda a vida, de sua santa pobreza, que escolheu para si e seus irmãos.
37 Por isso eu, Clara, serva de Cristo e das Irmãs Pobres do mosteiro de São Damião, embora indigna, e verdadeira plantinha do santo pai, considerando com as minhas outras Irmãs a nossa tão alta profissão e o mandamento de tão grande pai,
38 como também a fragilidade de outras, que temíamos em nós mesmas depois do falecimento do nosso pai São Francisco, que era a nossa coluna e única consolação depois de Deus e o nosso apoio (cfr. 1Tm 3,15),
39 repetidas vezes fizemos nossa entrega voluntária a nossa santíssima Senhora Pobreza, para que, depois de minha morte, as Irmãs que estão e as que vierem não possam de maneira alguma afastar-se dela.
40 E como sempre fui cuidadosa e solícita em observar a santa pobreza que prometemos ao Senhor e ao nosso bem-aventurado pai Francisco, e em fazer que fosse observada pelas outras,
41 assim sejam obrigadas até o fim aquelas que vão me suceder no ofício a observar e fazer observar sua santa pobreza, com o auxílio de Deus.
42 Para maior segurança, tive a preocupação de conseguir do senhor papa Inocêncio, em cujo tempo começamos, e dos seus outros sucessores, que corroborassem com os seus privilégios a nossa profissão da santíssima pobreza, que prometemos ao Senhor e ao nosso bem-aventurado pai,
43 para que em tempo algum nos afastássemos dela de maneira alguma.
44 Por isso, de joelhos dobrados e prostrada de corpo e alma, recomendo todas as minhas Irmãs atuais e futuras à santa mãe Igreja Romana, ao Sumo Pontífice e principalmente ao senhor cardeal que for encarregado da Ordem dos Frades Menores e de nós,
45 para que, por amor daquele Deus que pobre foi posto no presépio (cfr. Luc 12,32), viveu pobre no mundo e ficou nú no patíbulo,
46 faça com que sempre o seu pequeno rebanho (cfr. Lc 12,32), que o Senhor Pai gerou em sua Igreja pela palavra e o exemplo do nosso bem-aventurado pai São Francisco para seguir a pobreza e a humildade do seu Filho dileto e da Virgem, sua gloriosa Mãe,
47 observe a santa pobreza que prometemos a Deus e a nosso bem-aventurado pai Francisco e nela digne-se encorajá-las e conserva-las.
48 E como o Senhor nos deu nosso bem-aventurado pai Francisco como fundador, plantador16 e auxílio no serviço de Cristo e naquilo que prometemos ao Senhor e ao nosso pai,
49 e como ele durante a sua vida mostrou tanto cuidado em palavras e obras para tratar e cuidar de nós, sua plantinha,
50 assim recomendo e confio minhas Irmãs, presentes e futuras, ao sucessor do nosso bem-aventurado pai Francisco e a toda a Ordem,
51 para que nos ajudem a crescer sempre mais no serviço de Deus e principalmente a observar melhor a santa pobreza.
52 Se em algum tempo acontecer que as Irmãs tenham que deixar este lugar para se estabelecer em outro, sejam obrigadas, em qualquer lugar em que estiverem depois da minha morte, a observar a referida forma de pobreza que prometemos a Deus e a nosso bem-aventurado pai Francisco.
53 A que estiver no ofício deve ser tão solícita e previdente como as outras Irmãs para não adquirir nem receber junto a esse lugar nenhuma terra a não ser a que for exigida pela extrema necessidade para a horta em que temos que cultivar verduras.
54 Mas se em algum lugar, para honestidade e para isolamento do mosteiro for conveniente ter mais terreno além da cerca da horta, não permitam que seja adquirido ou mesmo recebido mais do que for pedido pela necessidade extrema.
55 E essa terra não deve ser trabalhada nem semeada mas ficar sempre baldia e inculta.
56 No Senhor Jesus Cristo, aconselho e admoesto a todas as minhas Irmãs, presentes e futuras, que sempre se empenhem em seguir o caminho da santa simplicidade, da humildade, da pobreza e também uma vida honesta e santa,
57 como aprendemos de Cristo e de nosso bem-aventurado pai Francisco desde o início de nossa conversão.
58 Foi dessas coisas que, não por nossos méritos mas só por misericórdia e graça de quem o deu, o Pai das misericórdias, espalhou-se o perfume (cfr. 2Cor 1,3; 2,15) da boa reputação, tanto para os de longe como para os de perto.
59 E amando-vos umas às outras com a caridade de Cristo, demonstrai por fora, por meio das boas obras, o amor que tendes dentro,
60 para que, provocadas por esse exemplo, as Irmãs cresçam sempre no amor de Deus e na mútua caridade.
61 Rogo também à que estiver a serviço das Irmãs que trate de estar à frente das outras mais por virtudes e santos costumes do que pelo ofício,
62 de forma que suas Irmãs, provocadas por seu exemplo, não obedeçam tanto por dever como por amor.
63 Seja também previdente e discreta para com suas Irmãs, como uma boa mãe faz com suas filhas,
64 tratando especialmente de provê-las de acordo com as necessidades de cada uma, com as esmolas que forem dadas pelo Senhor.
65 Também seja tão bondosa e acessível que possam manifestar com segurança suas necessidades
66 e recorrer a ela confiadamente a qualquer hora, como lhes parecer conveniente, tanto por si mesmas, como por suas Irmãs.
67 Mas as Irmãs que são súditas lembrem-se de que renunciaram à própria vontade por amor de Deus.
68 Por isso quero que obedeçam à sua mãe, como prometeram ao Senhor, espontaneamente,
69 de modo que sua mãe, vendo o amor, a humildade e a unidade que as Irmãs têm entre si, possa levar mais facilmente o peso que tem que suportar por causa do ofício,
70 e o que é molesto e amargo mude-se em doçura para ela pelo bom comportamento das Irmãs.
71 E como é estreito o caminho e apertada a porta por onde se vai e se entrana vida, são poucos os que por aí passam e entram (cfr. Mt 7,13.14).
72 E se há alguns que nele andam por um tempo, são pouquíssimos os que nele perseveram.
73 Mas felizes são aqueles a quem foi dado andar por ele e perseverar até o fim (cfr. Sl 118,1; Mt 10,22).
74 Tomemos cuidado, portanto, para que, se entramos pelo caminho do Senhor, de maneira alguma nos afastemos dele em algum tempo por nossa culpa e ignorância,
75 para não ofendermos a tão grande Senhor, a sua Virgem Mãe, a nosso bem-aventurado pai Francisco, à Igreja triunfante e mesmo à militante.
76 Pois está escrito: Malditos os que se desviam de vossos mandamentos (Sl 118,21).
77 Por isso dobro os joelhos diante do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo (cfr. Ef 3,14) para que, pela intercessão dos méritos de sua Mãe, a gloriosa Virgem Santa Maria, de nosso bem-aventurado pai Francisco e de todos os santos,
78 o Senhor que deu o bom começo dê o crescimento (cfr.1Cor 3,6.7) e também a perseverança até o fim. Amém.
79 Isto foi escrito, pode ser melhor para ser observado, eu deixo para você, minhas irmãs muito queridos e amados, presentes e futuras, como um sinal da bênção do Senhor e nosso bem-aventurado pai Francisco, e da minha bênção, sua mãe e seu servo.
Aqui é um testemunho da Santíssima Clara.