Dia da Morte de Francisco de Assis – 04 de outubro
Quase moribundo,
Francisco compôs o Cântico das Criaturas. Até o fim da vida deseja ver o mundo
inteiro louvando ao Senhor. Seu interesse não era a ecologia, mas o Deus
criador do céu e da terra. Seu relacionamento com a vida estava baseado no seu
relacionamento com Jesus.
No outono de
1225, enfraquecido pelas enfermidades, se retirou para São Damião. Quase cego e
sozinho numa cabana de palha, em estado febril e atormentado pelos ratos,
deixou para todos nós este cântico de amor ao Pai. A penúltima estrofe que
exalta o perdão e a paz, foi composto em julho de 1226, no palácio episcopal de
Assis, para por fim a uma desavença entre o bispo e o prefeito da cidade. Estes
poucos versos bastaram para impedir a guerra civil. A última estrofe, que
acolhe a morte, foi composta no começo de outubro de 1226, dias antes de sua
morte. O Cântico das Criaturas e a Oração da Cruz são os únicos escritos de
Francisco em Italiano antigo.
Francisco
deixa esta vida. Entra na vida eterna e nos presenteia com um lindo louvor a
Deus. O Deus de todas as criaturas.
Cântico de Frei Sol ou Louvor das Criaturas
1 Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória, a honra e toda bênção (cfr. Ap 4,9.11).
2 Só a ti, Altíssimo, são devidos; E homem algum é digno de te mencionar.
3 Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas (cfr. Tb 8,7), especialmente o senhor Frei Sol, que é dia e nos iluminas por ele.
4 E ele é belo e radiante com grande esplendor; de ti, Altíssimo, carrega a significação.
5 Louvado sejas, meu Senhor, pela Irmã Lua e as Estrelas (cfr. Sl 148,3), no céu as formaste claritas e preciosas e belas.
6 Louvado sejas, meu Senhor pelo Frei Vento, pelo ar, ou nublado ou sereno, e todo o tempo (cfr. Dn 3,64-65), pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
7 Louvado sejas, meu Senhor pela Irmã Água (cfr. Sl 148, 4-5), que é muito útil e humilde e preciosa e casta.
8 Louvado sejas, meu Senhor, pelo Frei Fogo (cfr. Dn 3, 63) pelo qual iluminas a noite (cfr. Sl 77,14), e ele é belo e alegre e vigoroso e forte.
9 Louvado sejas, meu Senhor, por nossa Irmã a mãe Terra (cfr. Dn 3,74), que nos sustenta e governa, e produz frutos diversos e coloridas flores e ervas (cfr. Sl 103,13-14).
10 Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor (cfr. Mt 6,12), e suportam enfermidades e tribulações.
11 Bem-aventurados os que as suportam em paz (cfr. Mt 5,10), que por ti, Altíssimo, serão coroados.
12 Louvado sejas, meu Senhor, por nossa Irmã a Morte corporal, da qual nenhum homem vivo pode escapar.
13 Ai dos que morrerem em pecados mortais! Felizes os que ela achar conformes à vossa santíssima vontade, porque a morte segunda não lhes fará mal! (cfr. Ap 2,11; 20,6)
14 Louvai e bendizei a meu Senhor (cfr. Dn 3,85), e dai-lhe graças, e servi-o com grande humildade.
Todo debilidato, com voz fraca, sumida, entoa Francisco o
Salmo 142: Você mea ad Dominum clamavi (“Com minha voz clamei ao Senhor...”). O
Salmo vai sendo entoado pouco a pouco, e ao chegar ao versículo Educ de
custodia animam meam (“Arranca do cárcere minha alma, pra que vá cantar teu
nome, pois me esperam os justos e tu me darás o galardão”). Faz-se grande e
profundo silêncio. Acabara de morrer, cantando, Francisco de Assis.
Quem é este que transfigura o trauma da morte em expressão
de liberdade tão suprema? Desaparece o sinistro da morte. E Francisco vai ao
seu encontro como quem vai abraçar e saudar uma irmã muito querida.
Ano de 1226. Francisco se acha muito debilitado. Seu
estômago não aceita mais alimento algum. Chega a vomitar sangue. Admiram-se
todos como um corpo tão enfraquecido, já tão morto, ainda não tenha
desfalecido. Transportado de Sena para Assis, Francisco ainda encontra forças
para exortar os que acorrem a ele. E aos irmãos diz: “Meus irmãos, comecemos a
servir ao Senhor, porque até agora bem pouco fizemos”. Ao chegar a Assis, um
médico se apresenta e constata que nada mais resta a fazer. Ao que Francisco
exclama: “Bem-vinda sejas, irmã minha, a morte!” E convida aos irmãos Ângelo e
Leão para cantarem o Cântico do Irmão Sol, ao qual Francisco Acrescenta a
última estrofe em louvor a Deus pela morte corporal.
Cria-se uma atmosfera tão jovial e alegre que o Ministro
Geral da Ordem, Frei Elias, interpela Francisco para que pare com toda aquela
atmosfera, vista como “cantoria”, para que enfim ele morra “convenientemente”, pois
poderia escandalizar os moradores de Assis. “Com tudo o que sofro, me sinto tão
perto de Deus que não posso senão cantar!” – respondeu-lhe Francisco.
Aproximando-se a hora derradeira, Francisco deseja ser
levado para a capelinha de Nossa Senhora dos Anjos, na Porciúncula, onde tudo
havia começado. Lá, num gesto de despojamento, de identificação com o Cristo
crucificado e de integração com o Pai, pede que o deixem, nu, sobre a terra e
diz aos frades: “Fiz o que tinha que fazer. Que Cristo vos ensine o que cabe a
vós”. Despede-se de todos os irmãos; abençoa-os; lembra-lhes que “o Santo
Evangelho é mais importante que todas as demais instituições”. Ainda deseja que
Irmã Jacoba lhe traga alguns daqueles deliciosos biscoitos. Anima o seu médico,
dizendo-lhe: Irmão médico, dize com coragem que a minha morte está próxima.
Para mim, ela é a porta para a vida!” E, então, canta o Salmo 142. Francisco
parte cantando, cortês, hospitaleiro e reconciliado com a morte.
O canto de Francisco está baseado em uma percepção realista
da morte: “Nenhum homem pode escapar da morte”. Mas como pode ser irmã aquela
que engole a vida, que decepa aquela pulsão arraigada em cada um de nós,
fundada em um “desejo” que busca triunfar sobre a morte e viver eternamente?
Francisco acolhe fraternalmente a morte. Nele realiza-se, de forma maravilhosa,
o encontro entre a vida e a morte, em um processo de integração da morte.
Francisco acolhe a vida assim como ela é, ou seja, em sua
exigência de eternidade e em sua mortalidade. Tanto a vida como a morte são um
processo que perdura ao longo de toda a vida. A morte faz parte da vida. Como e
despertar e o adormecer, assim é a morte para o ser humano. Ela não rouba a
vida; dá a esse tipo de vida a possibilidade de outro tipo de vida, eterna e
imortal, em Deus.
A morte não é então negação total da vida, não é nossa
inimiga, mas é passagem para o modo de vida em Deus, novo e definitivo, imortal
e pleno. Francisco capta esta realidade e abriga a morte dentro da vida. Acolhe
toda limitação e mostra-se tolerante com a pequenez humana, a sua e a dos
outros.
A grandeza espiritual e religiosa de Francisco no saudar e
cantar a morte significa que já está para além da própria morte; ela, digna
hóspede não lhe é problema; ao contrário, ela é a condição de viver eternamente,
de triunfar de modo absoluto, de vencer todo embotamento do pecado que a
transforma em
tragédia. Francisco soube mergulhar na fonte de toda a vida.
“Enquanto Deus é Deus, enquanto Ele é o vivente e a Fonte de toda a vida, eu
não morrerei, ainda que corporalmente morra!” (L. Boff).
não uma tragédia.
Morte, bem-vinda,
não uma inimiga.
Morte, uma irmã,
não uma ladra.
Morte, abertura para a plena liberdade,
presença do Reino de Deus, utopia do justos.
“Deus enxugará as lágrimas dos seus olhos, e a morte não existirá mais,
nem haverá mais luto, nem pranto, nem fadiga, porque tudo isso já passou” (Ap 21,4).
“Louvado
sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a
morte corporal, da qual nenhum vivente pode escapar” (São Francisco, Cântico do
Irmão Sol).
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